Políticas e tecnologias dos setores agroalimentar e florestal: a necessidade de uma visão integrada

Ricardo Miguéis

  (1)INESC TEC

Nuno Canada

  (2)INIAV

O desenvolvimento de uma visão mais integrada das práticas agrícolas, da produção alimentar, e da gestão florestal, é mais urgente do que nunca. Várias organizações nacionais e internacionais defendem este princípio, e os seus esforços traduzem-se em diferentes abordagens estratégicas. No entanto, consideramos ser importante colocar o desenvolvimento de políticas e de tecnologias no centro da implementação prática de qualquer visão estratégica. Além disso, qualquer um dos objetivos políticos, económicos, ambientais ou sociais que garantam um futuro suportável e sustentável para as gerações vindouras depende da nossa capacidade de desenvolver e disponibilizar soluções tecnológicas devidamente adaptadas. Não existe um equilíbrio concreto entre o nível de compromisso que é necessário assumir e o nível adequado de investimento em iniciativas de investigação e inovação. A missão assume um carácter urgente, e o alinhamento das prioridades a todos os níveis é crucial: desde a política e o financiamento a nível da UE, até à gestão a nível regional ou mesmo institucional, bem como à definição das agendas de I&I.

Tomemos como exemplo o Quadro Estratégico para 2022-2031 da Organização para a Alimentação e Agricultura (FAO) das Nações Unidas, que visa promover "melhor produção, melhor nutrição, melhor ambiente e melhores condições de vida", através da transição para sistemas agroalimentares mais eficientes, inclusivos, resilientes e sustentáveis, baseados em princípios de inclusão social. Ou mesmo o Pacto Ecológico Europeu - Green Deal, desenvolvido como parte integrante da estratégia da Comissão Europeia, com vista a melhorar a competitividade económica da UE, e implementar a Agenda 2030 das Nações Unidas e os objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Este Pacto demonstra quão complexos e notáveis são os desafios atuais. O Green Deal apresenta-se como uma nova estratégia de crescimento que visa uma economia competitiva e eficiente em termos de recursos, na qual não existe qualquer emissão de gases com efeito de estufa até 2050, e o crescimento económico não está associado à utilização extensiva desses mesmos recursos. Este será um passo importante e uma mudança drástica no nosso viés cultural, económico e político, alcançável apenas através de soluções tecnológicas que ainda não foram desenvolvidas e disponibilizadas aos cidadãos e à indústria. Este é um esforço que requer uma abordagem a vários níveis e o alinhamento de prioridades, bem como uma capacidade de colaboração sem precedentes entre os diferentes stakeholders dos ecossistemas e das cadeias de valor de I&I, a nível regional e nacional.

Em Portugal, a nova "Agenda de Inovação para a Agricultura" - atualmente a ser implementada pelo Governo português, com o apoio de diferentes entidades - está alinhada com o Green Deal, o Quadro Estratégico da FAO e os objetivos de Desenvolvimento Sustentável 2030 das Nações Unidas. Tendo em conta as especificidades da região sul da Europa e os efeitos das alterações climáticas na região do mediterrâneo, a atual agenda nacional aborda os principais desafios, atribuindo um papel fulcral ao conhecimento e à tecnologia, centrando-se também em determinados aspetos regionais.

Vamos aproveitar esta oportunidade para explorar um pouco mais este assunto. Em primeiro lugar, a digitalização dos sistemas alimentares será crucial para a competitividade e a sustentabilidade das organizações, e para a forma como os países se preparam para enfrentar os principais desafios nestes domínios. À semelhança dos sistemas humanos, a capacidade de melhorar a saúde (sustentabilidade) dos sistemas terrestres, aquáticos e agroalimentares depende da capacidade de monitorizar, diagnosticar (avaliar), estabelecer (gerir) e implementar protocolos de tratamento (recuperação).

Tendo em conta que, nos próximos anos, será necessário aumentar drasticamente a produção de alimentos, bem como lidar com o impacto significativo das alterações climáticas e de doenças emergentes e reemergentes, e a falta de profissionais no setor agrícola, entre outros fatores, as soluções disponíveis hoje em dia são, claramente, insuficientes.

Assim, torna-se necessário explorar duas grandes áreas complementares: desenvolver novas soluções e promover a capacitação dos agricultores, dos profissionais técnicos e das próprias organizações.

Em relação às novas soluções, gostaríamos de destacar a biotecnologia, a criação de plantas e animais (desenvolvimento de marcadores moleculares associados a traços fisiológicos e novas ferramentas de fenotipagem), e o uso de tecnologias digitais para garantir:


a) Monitorização inteligente.

b) Planeamento e controlo inteligentes.

c) Transparência, responsabilidade e segurança.


Soluções remotas de diagnóstico e de sensorização em tempo-real, desenvolvimento de fonotipagem de alto desempenho e melhoria da rastreabilidade e da biossegurança são exemplos de algumas áreas com grande interesse. Outras dimensões importantes que exigem um elevado nível de recursos computacionais – traduzindo-se em aplicações adaptadas aos utilizadores finais - são a gestão da irrigação (coeficientes de cultivo, indicadores de estado hídrico e quantificação da intensidade do stress hídrico); o diagnóstico do estado nutricional das plantas e a deteção precoce de doenças; e o uso de tecnologias digitais na pecuária, para melhorar o desempenho e as soluções baseadas em blockchain - todas elas áreas importantes em termos de investigação.

O reforço das capacidades dos agricultores, do pessoal técnico e das organizações é um fator essencial para o sucesso da adoção de novas soluções. Os processos de aperfeiçoamento e de requalificação devem ser implementados em grande escala, focando-se nas necessidades específicas dos sectores agrícola e alimentar.

Instalações de carácter experimental e projetos-piloto para o desenvolvimento, teste e demonstração de diferentes soluções serão cruciais para uma adoção em larga escala de produtos e práticas inovadoras.

Em Portugal, encontramo-nos a desenvolver uma rede de estações experimentais (testes de campo e living labs) para reforçar a capacidade de inovação nos setores da agricultura e da alimentação. Simultaneamente, estamos a reforçar a ligação entre a investigação, a inovação, a experimentação e o desenvolvimento de aplicações inovadoras que visam dar resposta a necessidades específicas. Para tal, tornam-se relevantes abordagens organizacionais inovadoras para aumentar a proximidade e a interação entre as organizações que se dedicam à investigação, as empresas privadas e outros stakeholders. Os Centros de Competência (e.g., Centro Nacional de Competências para a Inovação Tecnológica do Sector Agroflorestal - InovTechAgro) e os Laboratórios Colaborativos (e.g., Laboratório Colaborativo para a Inovação Digital na Agricultura - Smart Farm CoLab), que contam com a participação do INIAV e do INESC TEC, são casos que traduzem os esforços nesse sentido.

Em suma, para dar resposta aos desafios que são comuns a todos nós, i.e., já identificados no Green Deal e em todas as suas "sub-estratégias" e políticas, e aos desafios específicos de certas regiões, é importante garantir: 1) um alinhamento político e institucional a vários níveis, e a complementaridade dos objetivos políticos; 2) sinergias entre diferentes fontes de financiamento; 3) uma sensibilização para o facto de que a complexidade dos desafios exige um investimento muito maior em I&I, tanto a nível público, como na esfera privada, mas acima de tudo, uma visão cocriada e integrada das futuras prioridades políticas e dos esforços de I&I - que têm como grande meta a melhoria das condições de vida e a preservação do planeta.



(1)
Centro Nacional de Competências para a Inovação Tecnológica do Sector Agroflorestal - InovTechAgro

(2) Laboratório Colaborativo para a Inovação Digital na Agricultura