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(1)Engenheiro, FEUP;
A história da epidemia de peste bubónica, que conduziu ao cerco sanitário da cidade do Porto, que isolou o burgo durante alguns meses, no ano de 1899, pode ensinar-nos hoje alguma coisa? O trabalho de pesquisa médica e de combate à epidemia foi coordenado por Ricardo Jorge, que identificou o agente infeccioso. Perante a gravidade da doença, o governo em Lisboa decidiu fechar a cidade, proibindo a circulação de pessoas e de mercadorias, gerando muitas reacções por parte dos portuenses. Esta epidemia é também a primeira situação de crise de saúde pública, em que a fotografia vai desempenhar um papel relevante de documentação, por intermédio de dois fotógrafos portuenses: Aurélio da Paz dos Reis e Guedes de Oliveira.
O primeiro caso de peste bubónica no Porto, que foi considerada como a terceira grande epidemia global de peste, foi registado no dia 9 de Julho de 1899 por Ricardo Jorge. Ricardo Jorge era então o médico responsável pelos Serviços de Saúde e de Higiene do Município, que ele próprio fundara em 1892. Era um médico e um académico de grande prestígio e desde há muito tempo se dedicava às questões de Saúde Pública. Iria ser o seu grande reformador, depois de assumir funções na Direcção Geral de Saúde Pública em Lisboa.
Foi a primeira grande epidemia a ter um registo fotográfico assinalável. Há bastantes fotos da autoria do extraordinário fotógrafo portuense Aurélio da Paz dos Reis e algumas com o carimbo da Photographia Guedes, uma casa de fotografia conhecida na cidade nessa época. As imagens mostram as acções de combate à epidemia pelas brigadas sanitárias e pelos bombeiros, o trabalho de rectaguarda em laboratório realizado pelo pessoal médico sob a direcção de Ricardo Jorge, e documentam várias acções de protesto levadas a cabo pela população e pelas forças vivas da cidade
Estávamos no final do século XIX, período de profundas transformações sociais e económicas na cidade, com a chegada da industrialização, das novas tecnologias e também da fotografia.
A inteligentzia do Porto… pertencia à geração positivista. É esta geração que segue à geração romântica do Café Guichard e do Águia de Ouro. Em 1878 surgira a revista O Positivismo, dirigida por Teófilo Braga e o médico Júlio de Matos, director do hospital Conde Ferreira. Em 1882 a revista fizera uma cuidada recensão crítica sobre o darwinismo da Evolução da Espécies. O republicanismo parecia apostado em chamar a si o cientismo que crescia na Europa da segunda revolução industrial. Aurélio tem 20 anos e já colecciona recortes de jornais. Deve ser então que, através da revista O Positivismo, entra em contacto com as ideias de Charles Darwin. As obras que acabará por comprar, provavelmente numa das suas viagens a França, são as mais representativas do novo materialismo evolucionista, A Evolução das Espécies e A Descendência do Homem.
M. do Carmo Serén, Manual do Cidadão Aurélio da Paz dos Reis, edição CPF, 1998
Foi a fotografia e os notáveis fotógrafos do Porto que possibilitaram o registo da peste bubónica em 1899. Desde a invenção oficial da fotografia em 1839, a evolução do processo fora muito rápida, possibilitando imagens de qualidade e, sobretudo, imagens vivas, do quotidiano. Equipamentos mais leves, mais simples, negativos em vidro (1851), tornando possível a reprodução simples e ad infinitum de cópias, a adopção de técnicas sofisticadas – como a gelatina e brometo de prata (1880) - tornando o processo mais rápido e possibilitando a obtenção do chamado instantâneo. E, ao contrário do que se poderia esperar, todas estas inovações chegaram rapidamente a Portugal, e em particular ao Porto. Os fotógrafos portuenses mantinham contactos próximos com o que acontecia em França; todas as descobertas são imediatamente divulgadas e experimentadas.
Neste contexto surge com toda a naturalidade uma fotografia dos acontecimentos, que viria a resultar no chamado fotojornalismo. Quer Aurélio, quer Guedes de Oliveira são evidências claras dessa ligação, que despertava, entre a fotografia e o jornalismo. Em paralelo desenvolve-se uma fotografia de carácter social, que assume a missão de denunciar a situação dos mais pobres, dos desprotegidos. Estas novas áreas alargariam os horizontes do que se chamaria fotografia documental
Assistia-se ao mesmo tempo a desenvolvimentos notáveis na área da Saúde Pública. Em 1882 Koch descobrira o bacilo da tuberculose. Despertava uma Medicina apoiada em ciência, substituindo a medicina assente em mezinhas e em práticas empíricas, sem fundamentação científica. Eram, sobretudo, os avanços na microbiologia que possibilitavam os avanços na área da Saúde Pública. Identificados muitos dos agentes patogénicos microbianos, causadores da maior parte das doenças contagiosas que assolavam a Europa desse tempo, a comunidade científica pôde compreender um pouco melhor os mecanismos de propagação das doenças e pôde combatê-los com maior eficácia. A peste no Porto, no deambular do século XX, desempenharia um papel fundamental, acelerando a mudança através da valorização do laboratório e do microscópio, como suporte à medicina. Contribuiria também para uma reorganização profunda dos Serviços de Saúde Pública. E Ricardo Jorge seria peça chave nesta reforma, primeiro no Porto, à frente dos Serviços Municipais de Saúde Pública, depois em Lisboa, primeiro na Direcção-Geral de Saúde e Beneficência Pública e com a República na Direcção Geral de Saúde Pública.
A peste e o seu combate – o cerco à cidade
A ironia que a história sempre foi capaz de evidenciar: a terceira epidemia de peste que assolou a cidade do Porto teria vindo da província de Yunnan na China, onde se manifestou por volta de 1840. Demoraria, portanto, cerca de 60 anos a viajar até ao Porto, onde só seria identificada em 1899. Nesse tempo as viagens, até dos agentes infecciosos, faziam-se com outra velocidade.
4 de Julho 1899 |
Ricardo Jorge foi informado sobre algumas mortes inesperadas e inexplicáveis, que teriam ocorrido na Rua da Fonte Taurina, na Ribeira. Visitou o local passados dois dias e contabilizou quatro casos mortais entre dez infectados. Todos viviam “em prédios miseráveis e imundíssimos” [1] escreveria ele. |
9 de Julho 1899 |
Ricardo Jorge escreveria: “bacilo que microscopicamente revestia a morfologia do da peste – curto, atarracado, coração bipolar, espaço branco intermédio”. |
12 de Julho 1899 |
Pela primeira vez, num relatório que envia para o Governador Civil, identifica explicitamente, e com bastante certeza, a doença como a peste bubónica. |
28 de Julho 1899 |
Ricardo Jorge reafirma em relatório a sua convicção de que se trata de peste bubónica. |
8 de Agosto 1899 |
Ricardo Jorge confirma após exame bacteriológico, o diagnóstico anterior de peste, feito no laboratório bacteriológico municipal que fundara. O diagnóstico seria validado pelo trabalho laboratorial realizado por Câmara Pestana, director do Instituto de Bacteriologia de Lisboa. |
17 de Agosto 1899 |
Publicado um decreto governamental que impõe as primeiras medidas de cerco sanitário à cidade. |
23 de Agosto 1899 |
A cidade é cercada pelo exército, são fortemente restringidas entradas e saídas, quer de pessoas, quer de mercadorias. O “cerco”, como viria a ser recordado, tem consequências muito negativas, pois vai juntar à epidemia, grande instabilidade económica, desemprego e fome. |
24 de Agosto 1899 |
Reunião de comerciantes e homens de negócios do Porto no Palácio da Bolsa, para discutir o cerco da cidade, provocado pelo cordão sanitário (fotografa por Aurélio da Paz dos Reis). |
4 Outubro 1899 |
Ricardo Jorge deixa o Porto para a Direcção-Geral de Saúde e Beneficência Pública. |
Dezembro 1899 |
Fim do cerco. |
O “cerco” foi brutal e fora decidido pelo governo central, em Lisboa, contra as autoridades locais. Por isso, muita gente considerou o cerco como uma represália ao 31 de Janeiro e à luta do Porto pela República. Contra a medida manifestaram-se muitas das forças vivas locais, tentando forçar o governo a recuar. Alguns historiadores defendem mesmo que este acontecimento traumatizante poderá ter condicionado a atitude futura dos portuenses relativamente à capital, marcada sempre por uma distância crítica, a par com uma subserviência inibidora, responsabilizando Lisboa por tudo o que de mal acontece no burgo, mas incapaz de afirmar a sua autonomia. Realmente o cerco foi interpretado como uma humilhação para a cidade, e provocou até, a determinada altura, uma revolta contra os serviços médicos e contra o próprio Ricardo Jorge. Este acabaria por deixar, desiludido, a cidade, e assumir o cargo de inspector-geral da recém-formada Direcção-Geral de Saúde e Beneficência Pública . Esta DG constituiria um marco fundamental na história da Saúde Pública em Portugal, liderando a reforma dos serviços de Saúde Pública no país e publicando o Regulamento Geral dos Serviços de Saúde e Beneficência Pública de 1901.
O cerco só terminaria no final de Dezembro, já em vésperas do Natal, quando o número de casos infecciosos já era muitíssimo pequeno. Acredita-se, no entanto, que a doença terá permanecido endemicamente no Porto até cerca de 1915. Por um conjunto de circunstâncias felizes, a contabilidade final seria bastante mais baixa do que alguns esperariam, tendo em conta a gravidade da doença. No final, houve “apenas” 132 mortes.
Análise sobre a peste de 1899 e o cerco à cidade do Porto
Parece ser possível afirmar no presente que o carácter relativamente contido da epidemia de 1899 no Porto muito pouco terá devido ao cerco sanitário decretado pelo governo central. Esse cerco nunca funcionou bem, pois não fora bem preparado e a cidade nunca fora dotada dos meios necessários para o realizar. O sucesso do combate dever-se-á sim a outras medidas tomadas pelos responsáveis médicos, sobretudo as campanhas de extermínio dos ratos e também a um conjunto de circunstâncias sociais e ambientais que felizmente não favoreceram a propagação da doença. A espécie de pulga que era dominante em Portugal seria pouco eficaz a transmitir o bacilo e acredita-se que o rato teria desenvolvido uma imunidade, associada a uma mutação do bacilo, o Yersinia pseudotuberculosis.
A baixa mortalidade da doença pode explicar também a reacção fortemente contrária ao cerco da burguesia portuense, que via até outras doenças – a tuberculose ou o typho – como mais ameaçadoras do que a própria peste.
Se o cerco militar à cidade do Porto se pode considerar hoje como uma medida injustificada e até contraproducente, pois gerou descrédito nos serviços médicos, fazendo com que até houvesse casos de doença escondidos, como refere o próprio Ricardo Jorge no seu relatório, “pelos menos um quinto dos casos teem sido desconhecidos”, a prática médica na luta contra a epidemia parece revelar um conhecimento actualizado e uma modernidade de procedimentos, quer na componente de análise bacteriológica, quer nas acções de combate no terreno, nomeadamente contra os ratos, identificados como portadores do bacilo. Também as práticas de isolamento dos doentes infectados , de desinfecção das habitações, de vacinação das pessoas que tinham contactos com os doentes, de lavagem das ruas e dos esgotos com desinfectante, de cremação dos cadáveres em cal viva, foram medidas correctas e certamente muito eficazes.
Algo que parece também inegável é que a peste detectada na Ribeira expôs finalmente, perante a opinião pública, uma cidade suja, sem saneamento, muitas vezes mesmo sem água potável, com condições de habitabilidade muito baixas e com graves problemas de salubridade.
É preciso destruir quanto antes os bairros imundos onde a peste se acoita, e as ilhas inhabitáveis, antros infectos … para extinguir completamente o mal seria necessário sanear a cidade, arrasando completamente três bairros: o do Barredo, o da Fonte Taurina e o de Miragaia.
Ricardo Jorge, Demographia e Hygiena na cidade do Porto
Realmente, as vítimas pertenciam quase todas a estratos mais pobres da população, que habitavam sem condições mínimas de higiene . Essas condições favoreciam o desenvolvimento de pragas, como ratos e pulgas e, consequentemente, a propagação de doenças. Os médicos e os elementos mais progressistas da sociedade começaram a alertar para a necessidade de defesa de melhores condições de habitação, exigindo condições sanitárias mínimas. Os padrões de higiene e de habitabilidade não mais pertenciam só à esfera privada, mas passavam a ser uma obrigação do Estado e dos Serviços Públicos de Saúde.
Depois do diploma de 4 de Outubro de 1899, que criou a Direcção-Geral de Saúde e Beneficência Pública, para onde Ricardo Jorge foi chamado, e da sua regulamentação em 1901, faltava ainda um passo decisivo: cortar o secular cordão umbilical que ligava a Saúde Pública em Portugal à beneficência. Esse corte só aconteceria em 1911, depois da instauração da República, com a criação da Direcção-Geral de Saúde, por decreto do Ministro do Interior, António José de Almeida. Ricardo Jorge seria então nomeado Director-Geral de Saúde.
Ricardo Jorge continuaria a ser sempre um espírito crítico na defesa da saúde e do bem-estar das populações, manifestando-se muitas vezes contra as desculpas governamentais para a falta de recursos ou para da decisão de não investir no saneamento, na higiene das cidades e nos serviços de saúde.
Estamos chegados à época de um novo direito das gentes, de uma moralidade física geral, em que, por vivas que sejam outras preocupações de ordem política e colectiva, ascendeu entre elas ao lugar das mais instantes a da solidariedade higiénica internacional.
Ricardo Jorge, em preâmbulo do diploma que estabelecia a reorganização da DGS, em 1926