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STAYAWAY COVID. Rastreio Digital de Contactos para a COVID-19*

Rui Oliveira (1,2) José Manuel Mendonça (1,3)

  (1)INESC TEC;

(2)Universidade do Minho;

(3)Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto;

 

 

Numa pandemia, o rastreio de contactos é crucial para interromper as cadeias de transmissão. No entanto, a forma tradicional de o fazer tem limitações que podem ser colmatadas por uma ferramenta digital se devidamente adoptada pela população e integrada com os serviços de saúde. A STAYAWAY COVID é a resposta do INESCTEC a esse desafio.

 

 

Um vírus é um parasita cujo objectivo de vida é multiplicar-se e dominar o Mundo. Para o fazer, está dependente da captura de células de seres vivos, os seus hospedeiros, que lhe proporcionam as condições necessárias para copiar o seu material genético e continuar o seu percurso de infecção e replicação. Para a conquista do mundo, um hospedeiro, por mais vulnerável e colaborante que seja, não é suficiente; o vírus precisa de contagiar mais e mais hospedeiros.

Vencer o vírus é impedir que as suas instâncias parem de se replicar. Esta luta é travada pelo sistema imunitário de cada hospedeiro, mas, enquanto não lhe formos totalmente resistentes, resta-nos minimizar a sua transmissão. Para isso, e para não termos que voltar a um confinamento nacional indiscriminado, além das várias medidas individuais de prevenção que adoptamos, o rastreio de contactos, levado a cabo pelos serviços de saúde em qualquer surto infecto-contagioso, é crucial. No caso da COVID-19, porque o vírus é particularmente ardiloso — torna-nos silenciosamente infecciosos uns dias antes de qualquer sintoma e, mesmo sem nunca nada sentirmos, pode manter-nos assim um par de semanas — e porque não temos ainda capacidade de testar frequentemente toda a população, sinalizar rapidamente todos os que foram expostos a doentes infectados assume especial importância.

O rastreio de contactos tradicional baseia-se na memória dos doentes infecto-contagiosos para identificar as pessoas que a eles foram expostas recentemente. A partir dessa identificação, equipas de profissionais de saúde contactam individualmente as pessoas e fazem o seu seguimento clínico. O processo é exigente e moroso, sendo por isso difícil de escalar.

O objectivo da STAYAWAY COVID é complementar o rastreio de contactos tradicional, tornando-o independente da nossa memória e permitindo que cada um de nós avalie o seu próprio risco de exposição a infectados com COVID-19. Diariamente, no telemóvel de cada utilizador, a aplicação avalia o seu risco de contacto com as pessoas a quem foi confirmada a infecção pelo Serviço Nacional de Saúde. É actualmente considerado de risco, um contacto a menos de 2 metros e por mais de 15 minutos. Encontrando um destes contactos de risco nos 14 dias anteriores, a aplicação sugere ao utilizador que se isole e contacte as autoridades de saúde.

Conceptualmente, o funcionamento da STAYAWAY COVID é simples. Cada telemóvel gera um código numérico à sorte sem qualquer relação com o telemóvel ou o seu utilizador. Estes números são todos diferentes. Cada telemóvel emite várias vezes por segundo o seu código que é recebido por telemóveis que disponham da aplicação e estejam num alcance de umas dezenas de metros. O telemóvel receptor consegue estimar com razoável precisão se os emissores do código estiveram a menos de 2 metros de distância e, nesse caso, guarda os códigos daqueles com quem o contacto excedeu um quarto de hora; os restantes são descartados. Ao fim do dia, cada telemóvel conhece os códigos emitidos pelos telemóveis com quem esteve demasiado perto. Portanto, se, nos dias seguintes, a aplicação vier a saber que um dos códigos que guardou é de um telemóvel a cujo utilizador foi diagnosticada COVID-19, apresenta imediatamente um alerta. Para que tudo funcione, este utilizador, a quem foi diagnosticada a infecção, apenas tem que permitir que a sua aplicação coloque na Internet, ao alcance de todos, o código que o seu telemóvel emitiu nas semanas anteriores. Todos estes códigos são anónimos e ininteligíveis, não revelando a identidade nem qualquer outra informação sobre o utilizador da aplicação.

Na prática, a STAYAWAY COVID na sua arquitectura, desenvolvimento e operação é bem mais elaborada. Os maiores desafios na implementação do sistema surgiram com a análise e tomada de decisão sobre variados compromissos a estabelecer. Foi necessário estabelecer um equilíbrio entre a tecnologia disponível, a usabilidade e “inclusão digital”, e as várias vertentes da segurança do sistema e dos dados envolvidos. Em termos de arquitectura, a solução do INESCTEC assume um modelo de armazenamento e computação distribuído que visa manter os dados e o processamento parcialmente em cada um dos telemóveis, ao invés de permitir um tratamento do conjunto de todos os dados de forma global. Ainda que seja uma salvaguarda importante da privacidade dos dados, esta opção inviabiliza, no entanto, análises científicas, epidemiológicas e outras, igualmente importantes.

No que respeita à segurança, para além de seguidas as melhores práticas de desenvolvimento e implementação, adoptaram-se técnicas específicas para o problema. Um exemplo é a frequente alteração do código que cada telemóvel emite. De facto, não é sempre o mesmo, mas renovado a cada 10 minutos. Desta forma, procura-se mitigar o risco de um código ser maliciosamente observado e de facilmente permitir a identificação código-utilizador.

A usabilidade assoma em várias partes do desenho do sistema. Um procedimento que evidencia a cedência à usabilidade é a forma como o sistema procura assegurar que apenas utilizadores a quem foi diagnosticada COVID-19 partilhem os seus códigos. A validação de que os códigos partilhados correspondem a um utilizador infectado é feita através de um código que o doente recebe das autoridades de saúde e introduz voluntariamente na aplicação do seu telemóvel. É um processo simples, mas com alguma fragilidade no que respeita à segurança contra a fraude. Tecnicamente, várias opções poderiam ser usadas para tornar este passo mais seguro, mas o impacto na facilidade de utilização e na liberdade dos utilizadores não o justificaram. O desenvolvimento da STAYAWAY COVID tem-se guiado por uma constante análise custo-benefício de todos os intervenientes.

Ao contrário do rastreio tradicional, em que são os serviços de saúde que procuram os casos de risco, com a STAYAWAY COVID são os próprios utilizadores que, precoce, mas justificadamente, procuram ajuda. O rastreio digital de contactos está a ser utilizado pela primeira vez numa pandemia, condicionado ao ainda limitado conhecimento sobre a doença e à única tecnologia utilizável massivamente e de forma gratuita para a estimação da proximidade entre duas pessoas nas situações mais genéricas e variadas (Bluetooth). A sua exactidão e eficácia começam agora a ser avaliadas apesar da escassa informação operacional libertada pelo sistema. Se os resultados seguirem os bons indicadores actuais, a ferramenta poderá, no imediato, permitir um confinamento selectivo que possibilite uma vida de convivência tolerável com o vírus enquanto não o erradicarmos. O futuro, esse redefinirá certamente o rastreio de contactos tradicional.