Edição Especial “Ciência de Dados e Inteligência Artificial e Saúde”
(1)INESC TEC, Faculdade de Ciências da Universidade do Porto;
(2)CIDES/CINTESIS, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto
A deteção de lesões neoplásicas gástricas, designadamente as precoces, pode reduzir a mortalidade associada ao cancro gástrico. Os algoritmos de Inteligência Artificial apresentam hoje uma precisão elevada no apoio a este diagnóstico, motivando a sua integração no apoio à prática clínica num futuro próximo.
O cancro gástrico (Figura 1) é o terceiro tipo de cancro mais mortal no mundo (860 mil mortes em 2017) e em Portugal (2.8 mil mortes em 2017) [1]. Prevê-se em 2035 um aumento de 20% na incidência e na mortalidade deste, devido essencialmente a efeitos demográficos e diagnóstico tardio.
O rastreio minimamente invasivo e a endoscopia gastrointestinal (GIE) desempenham um papel primordial no diagnóstico precoce, crucial para a melhoria das taxas de sobrevivência. No entanto, devido a fatores técnicos e cognitivos, o risco de erros de diagnóstico causados por erro humano é significativo, bem ilustrado em exemplos como Pimenta-Melo [3], uma meta-análise de 22 estudos onde é relatada uma taxa de erro de 9% na deteção destas lesões. Isto acontece mesmo com a existência de protocolos bem definidos de mapeamento de estômago, tais como os da ESGE (European Society of Gastrointestinal Endoscopy) – 10 imagens – ou do Japão – 22 imagens.
A Inteligência Artificial e, mais especificamente a Visão Computacional, tem o potencial de mitigar essas limitações, especialmente em duas áreas bem definidas que foram identificadas como fontes relevantes de erros de diagnóstico, e que resultam em grande parte da observação e análise de dados de imagem:
• Deteção de pontos de referência gástricos – O estômago é um órgão difícil de visualizar na sua plenitude. Um especialista tem de manipular remotamente um dispositivo que ilumina, filma e interage com um órgão em forma de bolsa, com paredes deformáveis, e com poucas marcas visuais identificativas. Mesmo para um gastroenterologista experiente, não é fácil ter garantias de que visualizou 100% do tecido gástrico, sendo possível que as lesões identificativas (Figura 2) estejam precisamente nestas regiões não observadas. Como relatado por Pimenta-Melo [3], esta taxa de falhas pode atingir os 9%, o que é um fator muito relevante para as taxas de sobrevivência associadas a esta doença. E se um sistema baseado em Inteligência Artificial permitisse informar, com qualidade, o especialista sobre qual a percentagem de tecido gástrico visualizado durante um exame, e o pudesse guiar para as regiões ainda não observadas?
• Deteção de lesões de cancro gástrico – Apesar de a endoscopia digestiva alta ser um procedimento padrão, bem estabelecido e praticado, é possível, como referido acima, a falha na deteção de lesões. A título de exemplo, e para médicos ainda em período de aprendizagem, ou em regiões do globo em que esta especialidade não está tão bem desenvolvida, podemos até pensar que no futuro, sistemas baseados em Inteligência Artificial poderão viabilizar a otimização deste procedimento como acontece para a colonoscopia. E se um sistema baseado em Inteligência Artificial permitisse informar, com qualidade, o especialista sobre que tecidos examinados apresentam padrões visuais coerentes com lesões neoplásicas?
Para melhor percebermos qual a maturidade e atual eficácia de algoritmos de Inteligência Artificial para apoio ao rastreio e diagnóstico do cancro gástrico, foi feita uma análise deste estado da arte através da pesquisa de artigos científicos indexados pela PubMed, EMBASE e Scopus até à data de julho de 2020. Nesta, foram incluídos estudos que relatavam a eficácia diagnóstica de algoritmos de Inteligência Artificial para a deteção e caracterização de lesões do trato gastrointestinal superior, incluindo o estômago, tendo em conta várias medidas de desempenho. Para mais detalhes, sugere-se a consulta do artigo onde este estudo foi publicado [5].
Os resultados obtidos foram positivos e promissores para o futuro uso destas tecnologias em ambientes clínicos. De uma pesquisa inicial que resultou em 1678 estudos encontrados nesta temática, 19 cumpriam todos os critérios para uma análise quantitativa, exibindo valores já muito elevados de sensibilidade (90%) e de especificidade (89%). Em palavras mais simples, aproximadamente 9 em cada 10 lesões neoplásicas presentes foram corretamente detetadas e identificadas em todas as imagens analisadas pelo algoritmo, e aproximadamente 9 em cada 10 lesões classificadas como neoplásicas pelos algoritmos foram corretamente classificadas. Numa perspetiva mais técnica, a grande maioria dos algoritmos estava baseado nas mais recentes estruturas de redes neuronais profundas, com uma grande variedade de arquiteturas.
Apesar destes resultados carecerem ainda de uma validação em ambiente clínico, e do problema da deteção de pontos de referência gástricos estar muito menos desenvolvido do que o de deteção de lesões de cancro gástrico, é inequívoco que a atividade de investigação neste campo, associada aos muito promissores resultados já obtidos, traça um panorama muito positivo para a influência transformadora que a Inteligência Artificial vai muito provavelmente ter no rastreio e gestão de um crescente problema de saúde que é o cancro gástrico.
Referências
[1] Global Burden of Disease Collaborative Network. Global Burden of Disease Study 2016 (GBD 2016) Cancer Incidence, Mortality, Years of Life Lost, Years Lived with Disability, and Disability-Adjusted Life Years 1990-2016. Seattle, United States: Institute for Health Metrics and Evaluation (IHME), 2018.
[2] Stomach Cancer - Symptoms and Causes – Mayo Clinic.
[3] Pimenta-Melo A., Monteiro-Soares M., Libânio D., Dinis-Ribeiro M., Missing rate for gastric cancer during upper gastrointestinal endoscopy: a systematic review and meta-analysis. Eur J Gastroenterol Hepatol. 2016 Sep;28(9):1041-9.
[4] Li . et al., Convolutional neural network for the diagnosis of early gastric cancer based on magnifying narrow band imaging, Gastric Cancer, 2020.
[5] Arribas J., Dinis-Ribeiro M., et al., Standalone Performance of Artificial Intelligence for Upper-GI Neoplasia: a Meta-analysis. Gut. 2020 (aceite para publicação).