Artigo de Opinião

O nosso Dever para com a Sociedade*

Mário Amorim Lopes(1,2)

 (1)INESC TEC; (2)Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto

 

*Artigo escrito de acordo com a antiga ortografia

A ciência serve, ou deve servir, um propósito maior, que é o de melhorar as condições económicas e sociais da humanidade. E para que isso seja possível, a ciência, e sobretudo os cientistas, têm de estar presentes na discussão de Políticas Públicas, que representam decisões que influenciam essas mesmas condições económicas e sociais. Políticas Públicas baseadas na melhor evidência disponível e numa discussão aberta e plural são a melhor garantia de uma sociedade mais próspera. Mas para que tal seja possível, a comunidade científica tem de marcar presença.

 

Benoit Mandelbrot dizia que a ciência estaria seriamente comprometida se criasse silos impenetráveis, em que especialistas de cada silo debateriam apenas entre si, criando assim uma gigante câmara de eco que ressoaria somente para aqueles que já lá estão. Mandelbrot dava o exemplo do desporto: futebol é jogado por futebolistas; ténis por tenistas; e basquetebol por basquetebolistas. Não existe qualquer cruzamento entre os diversos desportos. Não existe interdisciplinaridade. E não existe um interesse partilhado, excepto por meia dúzia de pessoas que ocorre gostarem de mais do que um desporto.

Se isto era aceitável no desporto, apontava Mandelbrot, era impensável na ciência. A ciência beneficia de nómadas intelectuais capazes de cruzar várias áreas do conhecimento. Mas talvez tão ou mais importante do que isto, a ciência, mas sobretudo a sociedade, beneficia de cientistas capciosos que estejam dispostos a gerar impacto com os resultados da sua investigação.

Por impacto entendamos tudo aquilo que pode criar prosperidade, material ou não, para a sociedade, contribuindo para o seu desenvolvimento económico e social. Para muitos cientistas, isto passará pela transferência de conhecimento para a sociedade, geralmente feita através de patentes ou direitos autorais, mas este desiderato pode ser também alcançado de uma forma mais simples: influenciando positivamente a sociedade e todos os seus actores, em particular os actores políticos, a serem rigorosos nas suas análises, a não serem imunes à evidência, a discutirem com espírito crítico, a aceitarem o pluralismo. Esta missão faz-se, sobretudo, através das políticas públicas, onde temos estado repreensivelmente ausentes.

A nossa ausência reiterada do espaço de discussão das políticas públicas tem o efeito que se conhece: más políticas públicas, que oneram o contribuinte, e prestam um desserviço à sociedade. Não quero com isto sugerir que as políticas públicas seriam elaboradas de forma irrepreensível se contassem sempre com a nossa participação — afinal, também os cientistas são (muito) falíveis. Acredito, contudo, que podemos contribuir para que as políticas públicas sejam mais resilientes e assentes em métodos rigorosos, que é, afinal, o crux da ciência. Podemos contribuir para que haja mais e melhor informação na tomada de decisão. Podemos contribuir para que os decisores políticos consigam perceber as implicações das suas decisões para lá do horizonte da legislatura, momento que deixa de os afectar a eles, mas que continua a pesar sobre nós, cidadãos. Podemos contribuir informando, de uma forma séria e estruturada, a sociedade.

Esta possibilidade não é apenas uma prerrogativa — é um dever de quem faz ciência, especialmente quando feita por cientistas de excelência. O INESC TEC e as unidades de ensino superior associadas contam com alguns dos melhores cientistas do país, mas também do mundo, o que torna ainda mais imperioso que sejamos um actor activo e interventivo no espaço de discussão pública.

Isto não significa que falemos a uma só voz. Nas políticas públicas não existe uma só voz. O que isto significa é que poderemos e deveremos dar contribuições valiosas para a discussão, ainda que, por vezes, possam ser conflituantes. Seria altamente pernicioso que existisse um pensamento único numa unidade de criação de conhecimento, que se quer plural, heterogénea e intelectualmente livre.

A área da Saúde, em particular, carece desesperadamente desses contributos. As decisões que muitas vezes são tomadas, algumas das quais assentes tão e somente em preconceitos ideológicos, têm consequências gravosas para a sociedade e sobretudo para os mais vulneráveis, facto que não nos deverá deixar indiferentes. Más decisões e más políticas públicas impactam directamente milhares de pessoas.

A nossa missão, enquanto académicos, também é para com estas pessoas — os nossos concidadãos. Mesmo se todos os outros se abstiverem deste debate, temos de ser nós, académicos, os bastiões que almejam a uma sociedade construída sobre o espírito das luzes, o espírito da razão, dos factos e da ciência. Não é uma opção nossa. É um dever.