EDITORIAL

Precisamos de si

Dificilmente alguém discordará de que precisamos de melhores políticas de saúde. Aliás, precisamos de melhores Políticas Públicas em todos os sectores. A questão está em perceber se a falta de qualidade das Políticas Públicas é apenas o resultado da atuação dos governantes que escolhemos ou se será também uma falta de comparência nossa, pois podemos ajudar os governantes a tomarem melhores decisões, mas raramente o fazemos.

Curiosamente, a comunidade científica não esteve ausente nas respostas à pandemia covid-19, e o sentido de voluntarismo e participação foi muito elevado. Não apenas em Portugal, assistimos a investigadores a solicitarem (no caso de Portugal, a implorarem) por acesso a dados que permitissem estudar, analisar, enfim, contribuir para sabermos mais sobre um vírus que era, e ainda é, desconhecido.

Vimos também investigadores a reafetarem o seu equipamento laboratorial, em particular impressoras 3D, para a produção de equipamento de proteção individual e de ventiladores não invasivos. A Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP), para dar apenas um exemplo, colaborou com diversos hospitais, e até foi promovida uma recolha de acetatos, úteis na conceção destas viseiras improvisadas.

Vários investigadores, de diversos centros de investigação, trabalharam também em projetos de ventiladores mecânicos, desta forma tentando suprir as necessidades resultantes do aumento explosivo da procura, assim como dirimir o seu elevado custo.

Hospitais e outras unidades de saúde aceleraram o recurso à telemedicina, que ainda era limitado e ocasional, por forma a minorar o impacto da pandemia na atividade clínica (que ainda assim foi muito elevado). Isto obrigou a uma requalificação da infraestrutura tecnológica e à formação dos profissionais de saúde, o que representa sempre um custo, mas que produzirá ganhos durante muito tempo e poderá ser uma forma de reduzir as assimetrias e iniquidades que ainda existem no acesso à saúde em Portugal, especialmente em zonas remotas.

O INESC TEC também esteve ativo neste período pandémico, contribuindo com soluções para a área da Saúde. Esta incursão na Saúde não é nova, aliás. A área da Saúde atravessa vários centros de investigação do INESC TEC em múltiplas áreas científicas, diversos projetos e envolvendo um número apreciável de investigadores que contribuíram para a criação de algumas empresas.

Neste número especial da 1ª edição da Revista do INESC TEC Ciência & Sociedade, damos destaque a algumas atividades relevantes de investigadores do INESC TEC, que usaram a tecnologia para inovar na Saúde.

Para abrir esta edição incluímos um artigo de opinião sobre o dever da comunidade científica para com a sociedade, que faz uma reflexão sobre a colaboração da comunidade científica na discussão de Políticas Públicas.

Vários artigos envolvem a utilização de métodos avançados de Inteligência Artificial (IA), pelo que os enquadramos com um artigo que apresenta alguns dos avanços recentes da IA, e que revisita Alan Turing e as origens da IA. E porque, parafraseando José Régio, devemos saber para onde vamos, consulte também o artigo que explica a importância de a Inteligência Artificial ser explicável.

O recurso a IA foi também adotado num trabalho de reconhecida relevância prática para a COVID-19, desenvolvido no INESC TEC. Esse trabalho é descrito num artigo que procura ajudar a detetar a presença de lesões pulmonares provocadas pelo vírus em imagens de raio-X. Para tal, recorre a algoritmos de IA que ajudarão a equipa clínica a classificar os casos.

Numa outra iniciativa, também descrita num artigo desta edição, que tem gerado muito mediatismo, investigadores do INESC TEC juntaram-se para desenvolver uma aplicação de contact tracing, que permite rastrear focos de infeção e, desta forma, intervir mais rapidamente na sua contenção. Não obstante as objeções que possam ser levantadas a este tipo de aplicações, especialmente no que concerne à privacidade, a verdade é que a SAYAWAY COVID está a funcionar e a contribuir para dirimir a propagação da COVID-19.

E porque há vida para além da COVID-19, é importante destacar o que também tem sido feito pelos nossos investigadores noutros contextos clínicos. É o que pode encontrar num artigo que descreve o projeto MINE4HEALTH, desenvolvido em parceria com o Instituto Português de Oncologia, no Porto, que vai permitir que valiosíssima informação clínica possa ser extraída de diários clínicos e seja posta ao serviço da ciência e da prática clínica, auxiliando médicos na tomada de decisão oncológica.

Um outro artigo descreve como a Inteligência Artificial pode ser utilizada para o rastreio da retinopatia diabética, permitindo de uma forma automática detetar a presença ou estadiamento desta patologia, que pode levar à cegueira se não for detetada e tratada precocemente.

Um outro projeto do INESC TEC, também aqui descrito, recorre a IA para ajudar no diagnóstico do cancro gástrico através da análise de imagens endoscópicas com recurso a Inteligência Artificial. Esta ferramenta poderá ser um precioso auxílio dos médicos oncologistas, ajudando-os a elaborar diagnósticos mais rápidos e, quem sabe, certeiros.

Destacamos também o projeto do robô hospitalar de desinfeção, que permite desinfetar, com recurso a raios infravermelhos, as unidades de saúde, em particular os hospitais. Se isto lhe parece um contributo de limitado alcance, é importante ter presente que as infeções adquiridas em ambiente hospitalar são uma das principais causas de morte de quem está internado, especialmente de quem é submetido a cirurgia. Pode ler mais sobre este assunto num artigo que descreve um robô para desinfeção hospitalar.

Finalmente, e como disse Hegel, o que nós aprendemos com a história é que nada aprendemos com a história, incluímos um artigo sobre o cerco sanitário durante a epidemia de peste bubónica que ocorreu no Porto em 1899. São impressionantes algumas das semelhanças entre o que se passou há mais de um século e o que vemos acontecer agora durante esta pandemia que nos afeta. Para refletirmos.

Todas estas contribuições foram possíveis devido a três vetores fundamentais: vontade, tecnologia e políticas de saúde. Neste caso, a vontade e a tecnologia precederam as políticas, que foram atrás dos desenvolvimentos. A legislação foi alterada para permitir o recurso ao contact tracing; alguns critérios foram relaxados, por parte do Infarmed, para que fosse possível disponibilizar algumas das inovações que estavam a ser propostas; os trâmites pesados da Administração Pública foram flexibilizados para que fosse possível dar uma resposta em tempo útil.

E tudo isto foi possível pela emergência da situação, mas também, e sobretudo, por pressão da comunidade académica e da sociedade. Consciente ou inconscientemente, fomos agentes que promoveram políticas de saúde e que pressionaram por uma mudança. Se o conseguimos fazer em tempos de emergência, por que não haveríamos de o conseguir fazer também em tempos de normalidade? Temos esse dever para com a sociedade.


 

Mário Amorim Lopes, Aurélio Campilho (1,2)

  (1)INESC TEC; (2)Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto