INESC TEC
Ao longo das duas últimas décadas, o setor energético passou por uma profunda transformação estrutural, que podemos resumir com os três “D”: descarbonização, descentralização e digitalização.
O trajeto rumo à descarbonização tem registado progressos notáveis, através de uma maior integração de fontes de base renovável. Tal processo engloba decisões estratégicas, como a substituição de tecnologias de produção de energia elétrica com elevada intensidade carbónica, como as centrais a carvão, por centrais baseadas em energias renováveis, o aumento das taxas de autoconsumo de energia renovável entre os setores industrial, doméstico e edifícios, e a eletrificação de frotas de veículos. Adicionalmente, os esforços estendem-se a vetores energéticos como o hidrogénio verde e tecnologias de armazenamento de energia, proporcionando uma maior flexibilidade ao sistema energético, incluindo o armazenamento sazonal, e (pelo menos) mantendo a segurança do abastecimento energético. No entanto, o aumento substancial de energia renovável introduz desafios significativos em todos os elementos do sistema energético: produção, transmissão, distribuição e consumo.
A descentralização é feita através de diferentes processos. Isto inclui tecnologias de produção distribuída, e.g., centrais de cogeração, instalações fotovoltaicas coletivas, e reutilização de frio/calor desperdiçado - permitindo aos consumidores e às comunidades de energia preços mais reduzidos, quando comparados aos valores do mercado de retalho. O surgimento do papel do consumidor-produtor, e.g., consumidor capaz de produzir e consumir energia elétrica, contribui ainda mais para esta descentralização. Os consumidores-produtores podem, assim, comprar e vender energia através da rede pública, individualmente ou como membros de determinada comunidade de energia local. A evolução dos novos modelos de negócios focados na propriedade partilhada ou aluguer de ativos requer mecanismos financeiros e enquadramentos regulatórios robustos, sendo crucial para garantir equidade e resiliência energética, especialmente para os consumidores vulneráveis.
A digitalização foi inicialmente impulsionada pela implementação de infraestruturas de contagem inteligente. No entanto, os avanços recentes na internet-das-coisas e na tecnologia de nuvem estão a expandir a digitalização para além da infraestrutura elétrica, abrangendo utilizadores da rede e prestadores de serviços, incluindo os de setores relacionados como por exemplo a mobilidade. Conceitos como gémeo digital, espaços de dados comuns de energia, e internet-da-energia estão a emergir, com vários projetos-piloto (alguns, ainda a decorrer), o que significa uma transição para um panorama energético mais conectado e inteligente.
O livro branco da Comissão Europeia (CE) “Artificial Intelligence: a European approach to excellence and trust” descreve como pode ser desenvolvido um quadro regulamentar para a IA no seio da União Europeia (UE), além de classificar o setor energético como de elevado risco (à semelhança de outros como a saúde e os transportes). Assim, o setor energético tem vindo a utilizar sistemas periciais como ferramentas de IA base, devido a) à forma como apresentam e armazenam conhecimento especializado, de forma estruturada, b) à consistência em termos de tomada de decisão, e.g., aplicando as mesmas regras e o mesmo conhecimento a situações semelhantes, e c) à possibilidade de documentar e partilhar conhecimento especializado. Um dos primeiros trabalhos de relevo na área foi publicado em 1989, enquadrando a IA sob o termo “sistemas periciais” [1]. Atualmente, ainda é possível encontrar sistemas periciais em produtos comerciais e em processos de automação da rede elétrica, e.g., sistemas de proteção nas subestações.
A procura por soluções adaptativas que possam aprender com os dados — sejam recolhidos de fontes de campo ou utilizando ferramentas de software tradicionais baseadas em física para simulação de sistemas energéticos — aumentou significativamente com a expansão dos sistemas de energia e a integração de novas fontes de energia. Isto motivou a investigação em redes neuronais artificiais e outras metodologias de aprendizagem automática, incluindo árvores de decisão e sistemas de inferência difusa. Inicialmente focada na operação do sistema de energia, esta investigação ganhou impulso com o início do século XXI, alargando o seu âmbito para incluir aplicações emergentes, como a gestão ativa do consumo, previsão da produção renovável para os próximos dias, otimização da operação de sistemas de armazenamento e gestão de ativos [2]. Exemplos de casos de sucesso na indústria incluem o uso de árvores de decisão e redes neuronais para a avaliação de segurança dinâmica nos sistemas de energia da Hydro-Québec e BC Hydro [3]; o uso de vários modelos de aprendizagem automática (por exemplo, redes neuronais, gradient boosting trees) para previsão de energia eólica e solar [4]; prever as falhas na rede de distribuição que são prováveis de ocorrer num determinado contexto e as respetivas durações da reparação [5]; ou um sistema, baseado em dados, que fornece recomendações personalizadas de eficiência energética para clientes comerciais [6].
Os mais recentes avanços em IA levaram a uma ainda maior utilização desta tecnologia no setor energético, como a melhoria do desempenho e redução dos custos do hardware; deep learning para diferentes áreas, como a visão computacional ou o processamento de linguagem natural; novos paradigmas, como transferência de conhecimento (transfer learning) e a IA generativa, plataformas de IA automatizadas e de baixo código; e novos conceitos de IA inspirados em neurociências (e.g., mecanismo de atenção). Além disso, os desafios impulsionados pela indústria — exemplificados pelo L2RPN (Learning to Run a Power Network)) from RTE, have prompted collaboration among AI scientists and power system experts [7]. These collaborative efforts motivated different groups to develop a new reinforcement learning-based assistant to aid human operators in operating electrical grids during normal operations and when the system is under stress due to overloads or disturbances.
Dois outros paradigmas emergentes no setor energético são a aprendizagem automática informada pela física e a inteligência no edge. Em problemas onde as abordagens de análise numérica são complexas de projetar ou demasiado caras para calcular com precisão, técnicas de aprendizagem automática informada são usadas para resolver equações algébricas ou lidar diretamente com cenários com dados limitados [8]. A necessidade de controlar recursos energéticos distribuídos localmente ou micro-redes, ou mesmo a questão da computação intensiva em energia e da segurança de dados, são algumas das questões que motivam o avanço da investigação em edge AI para sistemas de energia [9].
Para concluir, os diferentes stakeholders do setor energético — nomeadamente os operadores de sistemas elétricos, as empresas de comercialização e de serviços de energia, os consumidores/prosumidores, as comunidades de energia, os fornecedores de software e soluções de automação, entre outros — dedicam-se agora a tecnologias de IA, de acordo com os seguintes fatores de motivação para a adoção:
Uma viagem rumo a um ecossistema interdisciplinar de investigação e de inovação
O grupo de trabalho C2.42 do CIGRE estabeleceu uma estratégia de inovação para guiar a comunidade de investigação em termos de metas a alcançar no setor da IA. Este plano visa alavancar o potencial da IA, garantindo padrões de teste e segurança de alta qualidade. A estratégia inclui três componentes principais: a) investigação fundamental para desenvolvimento e validação de novos princípios e ideias, b) iniciativas de código aberto para promover provas de conceito, e c) instalações de teste e experimentação (TEF) para processos de integração e industrialização. De acordo com a definição da CE, uma TEF é uma “combinação de instalações físicas e virtuais, nas quais os fornecedores de tecnologia podem obter, principalmente, apoio técnico para testar as mais recentes tecnologias de software e hardware baseadas em IA (incluindo a robótica baseada em IA), em ambientes reais”.
According to the EC definition, a TEF is a “combination of physical and virtual facilities, in which technology providers can get primarily technical support to test their latest AI-based software and hardware technologies (including AI-powered robotics) in real-world environments.”
O trabalho do INESC TEC na área da IA para sistemas de energia, conforme ilustrado na Figura 1, está alinhado com esta estratégia, com a estratégia de IA da UE e o AI Act
Em termos de investigação fundamental, o INESC TEC lidera o projeto AI4REALNET do Horizonte Europa (a Figura 2 apresenta um resumo do conceito do projeto), que aplica a IA a infraestruturas críticas, como as redes elétricas, as ferrovias, e o controlo de tráfego aéreo. O projeto visa melhorar a tomada de decisão de operadores humanos com recurso a IA, ao invés de focar-se exclusivamente na adoção de sistemas de IA. O objetivo passa por otimizar a colaboração entre humanos e IA, aumentando a eficiência dos sistemas sociotécnicos e garantindo um maior envolvimento, bem como um melhor e mais consistente desempenho por parte dos profissionais. Esta abordagem interdisciplinar envolve áreas tradicionalmente distantes, como a filosofia, a psicologia e a fiabilidade humana, para estudar como os especialistas tomam decisões colaborativas em situações complexas e desenvolver critérios de desenho e avaliação eficazes para apoiar a tomada de decisões humanas. Inclui também engenharia cognitiva e biomédica para compreender os processos cognitivos humanos e melhorar as interfaces homem-máquina, bem como física, matemática, teoria da decisão, ciência da computação e domínios de engenharia específicos relacionados com energia e mobilidade.
A ENFIELD, uma rede europeia de centros de excelência em IA, integra diferentes disciplinas, incluindo IA “verde”, IA adaptativa, IA centrada no ser humano, e IA confiável. Neste caso, o INESC TEC visa avançar a investigação de IA centrada no ser humano, para desenvolver modelos de IA inerentemente interpretáveis. Estes modelos são desenhados para operar de forma transparente, permitindo que os humanos entendam e ajustem os mecanismos que convertem dados em decisões — especialmente quando o comportamento do sistema não cumpre com o expetável. A investigação atual foca-se no desenvolvimento de sistemas periciais em constante evolução, capazes de aprender e melhorar a partir de dados, e de lidar com determinadas tarefas como aprendizagem supervisionada e reforçada, e.g., classificar a segurança dinâmica do sistema elétrico ou desenvolver estratégias de controlo ótimas para sistemas de armazenamento.
No projeto Green.Dat.AI do Horizon Europa, o foco está no consumo de energia associado a IA, e o INESC TEC está a desenvolver técnicas de aprendizagem federada e IA em dispositivos periféricos para carregamento inteligente de veículos elétricos e otimização de energia renovável, bem como uma metodologia e software para monitorização do consumo de energia dos métodos baseados em IA.
Esta investigação é apoiada por uma iniciative de código aberto[RB4] do INESC TEC, promovendo a inovação e a colaboração, e disponibilizando algoritmos para a comunidade em geral. Assim, é possível contribuir para a plataforma AI-on-demand, promovida pela CE, acelerando os avanços em IA e garantindo uma maior transparência.
INa fase de industrialização, o INESC TEC recorre a dois instrumentos-chave: TEF e hubs de inovação digital (DIH). A partir de outubro de 2024, o INESC TEC apostou na criação de polos em duas TEF europeias para as comunidades de energia/micro-redes (AI-EFFECT) e para as energias renováveis marítimas (enerTEF). Este esforço irá apoiar a integração, os testes e a demonstração de tecnologias de IA de ponta no setor energético, em colaboração com parceiros nacionais como a Cooperativa Eléctrica do Vale d’Este e a Companhia da Energia Oceânica.
Para apoiar start-ups e PMEs na valorização dos seus produtos, serviços e processos com recurso a tecnologias digitais como a IA e a computação de alto desempenho, o INESC TEC coordena um DIH denominado ATTRACT. Este hub disponibiliza conhecimentos técnicos e especializados em vários setores, incluindo energia e infraestruturas, bem como serviços de inovação para apoiar a transformação na indústria. No setor da energia, visa desenvolver e testar casos de uso de IA com ganho imediato, e validar os níveis de maturidade tecnológica, explorando ao máximo as capacidades das TEF.
Por fim, o envolvimento do INESC TEC em associações europeias como a Adra e a AIOTI permite que a instituição contribua para a política europeia de IA e inovação, enquanto aprofunda os objetivos internos de investigação e de inovação. Este compromisso alinha os projetos do INESC TEC com as áreas prioritárias da UE, facilitando a colaboração e garantindo o acesso aos mais recentes desenvolvimentos e oportunidades de financiamento de IA.
Conclusão
A tecnologia de IA moderna pode trazer valor ao setor energético em várias dimensões. Em primeiro lugar, podem tornar mais rápidos os processos de tomada de decisão em termos de operação e planeamento de sistemas de energia, com elevada integração de energias renováveis — onde a flexibilidade de vários recursos (produção, consumidores ou ativos da rede) é fundamental. Tal é particularmente importante em cenários complexos, e.g., fenómenos climáticos extremos e ciber-ataques, onde a adaptabilidade do sistema é fulcral para manter a integridade e a resiliência das infraestruturas/sistemas. Em segundo lugar, estas tecnologias podem contribuir para otimizar novos modelos de negócios, como a partilha de energia entre os prosumidores, o carregamento inteligente de veículos elétricos, e reduzir o risco de investimento em ações de eficiência energética. Isto contribuirá para democratizar o acesso às energias renováveis a um custo acessível. Em terceiro lugar, estas soluções são capazes de processar e explorar sistematicamente grandes volumes de dados heterogéneos, que abrangem toda a cadeia de valor de energia e mais além: mobilidade, distribuição e tratamento de água, e computação de alto desempenho. Assim, poderão melhorar — e, quiçá, automatizar — os atuais (ou futuros) processos tradicionalmente desempenhados por humanos, ou equipar sistemas periciais com novos requisitos, como a adaptabilidade e a robustez perante novos cenários.
No entanto, o consumo de energia elétrica associado a soluções de IA que exigem uma significativa utilização de recursos de computação é uma preocupação para dois setores — energético e computação de alto desempenho — ambos a defenderem ativamente a descarbonização completa e o uso racional de eletricidade. Ainda neste sentido, importa referir que a implementação, ao nível industrial, de modelos de linguagem de larga escala, requer recursos computacionais substanciais, levando ao aumento do consumo de energia elétrica. A privacidade e a segurança dos dados também são requisitos chave para a IA, uma vez que, em vários casos de uso, são utilizados dados pessoais (consumo de energia elétrica, sensores em habitações e edifícios, interrupção de electricidadeeletricidade) ou dados confidenciais sobre a infraestrutura da rede elétrica ou negociação no mercado de eletricidade. Assim, é necessário criar soluções robustas para violações de dados onde a fiabilidade e segurança do modelo de IA são fundamentais. A certificação e a verificação formal de modelos de IA que operam de forma autónoma, ou que fornecem recomendações aos seres humanos, é também essencial para garantir confiança.
Notas
Este trabalho foi apoiado pelos projetos AI4REALNET (GA n.º 101119527), ENFIELD (GA n.º 101120657), AI-EFFECT (GA n.º 101172952) e enerTEF (GA n.º 101172887) — todos eles financiados ao abrigo do Programa-Quadro de Investigação e Inovação da União Europeia, Horizonte Europa. Os pontos de vista e as opiniões expressas estão única e exclusivamente associados ao autor, e não refletem necessariamente as da União Europeia ou da Comissão Europeia. A União Europeia e autoridade financiadora não poderão ser responsabilizadas por tais pontos de vista e/ou opiniões. O autor gostaria de agradecer a todos os membros do grupo de trabalho CIGRE C2.42
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