AI e Liderança - a próxima fase. Estaremos preparados?

João Claro

  INESC TEC & Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto

Arlindo Oliveira

  INESC & Instituto Superior Técnico (IST)


À medida que a inteligência artificial (IA) continua a evoluir, o seu impacto em quase todos os domínios da sociedade torna-se mais evidente: desde a economia e a saúde, passando pela indústria, a educação, a ciência e os governos. As organizações de investigação, desenvolvimento e inovação (I&D&I), posicionadas na vanguarda desta transformação, necessitam de lideranças qualificadas capazes de guiar a adoção de IA, enquanto abordam questões éticas, colaborativas e sociais mais abrangentes. Uma liderança eficaz em termos de IA deve focar-se em determinados aspetos para além do aumento da eficiência ou da competitividade organizacional; neste caso, uma abordagem visionária que defenda a mudança social e padrões éticos, promova a colaboração interdisciplinar e aborde a complexidade de cenários imprevisíveis. Assim, os líderes devem equilibrar a inovação com a responsabilidade, alavancando o potencial da IA para alcançar objetivos organizacionais e promover o bem-estar social.

Este artigo visa explorar o papel que os altos cargos em I&D&I devem assumir para abordar estas questões, fomentar a transformação nas suas organizações e gerar impacto positivo e duradouro.

Viabilizar as mudanças societais para além das organizações

De forma a beneficiar do potencial da IA, as lideranças das organizações de I&D&I devem adotar uma visão mais abrangente, e que não se foque apenas nos objetivos institucionais, mas também nas implicações éticas e sociais das suas atividades. A IA traduz-se em oportunidades únicas para abordar desafios complexos, como as alterações climáticas ou a saúde pública. No entanto, alcançar estes resultados de forma responsável exige a colaboração interorganizacional, e que sejam estabelecidos padrões éticos rumo a mudanças sociais que promovam o bem-estar.

No que toca a liderança em I&D&I, a gestão ética deve ser um elemento central da missão adotada, refletindo-se em práticas que não só promovam a investigação e a inovação, mas também reflitam valores de justiça, transparência e responsabilidade. Para além de priorizar os avanços dentro das próprias instituições, os líderes devem colaborar com entidades governamentais, instituições de ensino e stakeholders do setor industrial, de forma a promover políticas de IA responsáveis e projetos que visem beneficiar as populações.

Um dos principais desafios prende-se com a falta de preparação para esta mudança, entre determinados atores da academia e das organizações de I&D&I. Ao contrário da investigação tradicional, que pode levar anos até alcançar um impacto significativo na sociedade, a IA requer uma adaptação mais rápida, e processos de tomada de decisão mais ágeis. As lideranças devem procurar ecossistemas abertos e colaborativos, onde o conhecimento e os recursos são partilhados livremente. Esta mudança exige repensar as fronteiras competitivas e explorar novos modelos de parceria que alinhem as metas organizacionais com as necessidades da sociedade.

Expandir o papel externo e interno das instituições

Para que as organizações de I&D&I liderem de forma eficaz em IA, é importante adotar uma visão mais abrangente, visando um maior impacto externo e também uma mudança na cultura interna das organizações. Externamente, as lideranças devem defender práticas de IA eticamente responsáveis, envolver-se em discussões políticas e contribuir para educar sobre o potencial e os riscos da IA. Ao assumirem um papel de liderança em termos de ética, privacidade e proteção de dados em IA, as organizações serão capazes de estabelecer normas que beneficiem a sociedade e reforcem a sua credibilidade como entidades pioneiras no avanço da IA para benefício das populações.

Internamente, é vital promover um ambiente de abertura e experimentação. Os líderes devem fomentar uma cultura laboral em que as pessoas se sintam capacitadas para partilhar ideias, assumir determinados riscos e explorar novas abordagens - sem medo de falhar. Dadas as incertezas e o ritmo acelerado do desenvolvimento de soluções de IA, uma cultura de experimentação é particularmente valiosa. Assim, as lideranças devem formar equipas colaborativas onde a IA complemente - ao invés de substituir - o conhecimento das pessoas, encorajando os investigadores a aliar a criatividade e o pensamento crítico ao potencial analítico da IA.

A formação avançada, para lideranças e equipas, sobre aspetos técnicos e éticos, bem como sobre o impacto social da IA, pode ajudar a preparar as organizações para gerir a IA de forma responsável. Recorrer a especialistas externos, partilhar o conhecimento interdisciplinar e explorar diferentes abordagens são ações que devem ser fomentadas, para que as lideranças usufruam de uma ampla gama de insights no que toca a tomada de decisões. Além disso, é importante integrar conhecimentos diversos - da ciência de dados à ética –, para enriquecer as iniciativas de IA, garantindo que os avanços são informados, justos e refletem perspetivas variadas.

Mais: tratar questões não técnicas, como a ética e a privacidade, dentro da organização, requer uma abordagem proativa. À medida que a IA evolui, o mesmo acontece com os desafios éticos e de privacidade. Neste sentido, as lideranças devem trabalhar para incorporar princípios éticos no desenvolvimento e na implementação de sistemas de IA, garantindo que as tecnologias são desenhadas e adotadas sem negligenciar aspetos como a equidade, a transparência e a responsabilidade. Este compromisso com os padrões éticos não só minimiza os riscos, como também gera confiança dentro da organização, e no que toca à imagem da instituição perante a comunidade.

Gerir as mudanças em contextos de incerteza

Sendo que a IA é um domínio em franca evolução, a incerteza torna-se uma constante. As lideranças de instituições de I&D&I devem ser capazes de gerir as mudanças num ambiente onde os avanços tecnológicos e as suas implicações são cada vez mais imprevisíveis. Um aspeto crítico passa por compreender e explorar as áreas de transição: desde perceber onde investir em tecnologias de IA, passando por antecipar mudanças necessárias em termos de competências. Assim, os líderes devem equilibrar projetos de curto prazo com estratégias a longo prazo, garantindo que os recursos são alocados de forma eficiente, mesmo tendo em conta a obsolescência em termos de hardware e software. Ao promover a colaboração entre investigadoções e sistemas de IA, torna-se possível criar equipas resilientes, onde os pontos fortes da IA no processamento de dados complementam os insights e a intuição humana.

O ritmo acelerado da obsolescência tecnológica implica uma maior agilidade e um foco intenso na atualização das infraestruturas das organizações. Investir em soluções tecnológicas flexíveis e escaláveis, passíveis de adaptar-se a mudanças, é muito importante, bem como cultivar uma cultura que integre a aprendizagem e a adaptabilidade contínuas. As práticas de gestão em investigação também precisam de evoluir para explorar a dinâmica única da inovação impulsionada pela IA, indo além das métricas tradicionais para encorajar a flexibilidade, a capacidade de resposta e a aptidão para traçar novos rumos, à medida que surgem novas oportunidades.

De forma a enfrentar estes desafios, as lideranças devem fomentar uma cultura aberta que incentive a experimentação e a inovação. Um ambiente seguro para processos de “tentativa-erro” é crucial, especialmente em domínios onde os avanços decorrem, geralmente, de ideias não convencionais. Os líderes devem incentivar as equipas a abordar os problemas de forma criativa, e apoiar diferentes pontos de vista para inspirar o desenvolvimento de novas soluções. Este compromisso com a aprendizagem contínua e as estratégias flexíveis é essencial para capacitar os investigadores, ajudando-os a gerir os riscos associados à IA - incluindo estarem preparados para a obsolescência tecnológica, através de abordagens baseadas em cenários para a gestão de projetos.

Preparar as lideranças para o futuro da IA

Dadas as atuais lacunas no seio da comunidade académica para a rápida transição da IA, é crucial desenvolver programas de formação avançada para líderes. Estes devem focar-se não só nos conhecimentos técnicos, mas também nos princípios éticos, colaborativos e estratégicos necessários para lidar com os desafios organizacionais e sociais da IA. Preparar os líderes para uma colaboração eficaz entre humanos e IA é crucial; o processo de treino de soluções de IA deve privilegiar competências como a formação interdisciplinar de equipas, a aptidão para questões éticas e para processos de tomada de decisão mais ágeis, capacitando-os para integrar ferramentas de IA que apoiem e valorizem o conhecimento das pessoas.

A agilidade em avaliar e mitigar os riscos não técnicos associados à IA - desafios éticos, impacto social, e vieses - é um aspeto igualmente importante. Realizar processos de avaliação de projetos que recorram a IA, de forma regular, e que considerem questões éticas, legais e sociais, pode também apoiar as organizações na identificação e resolução de potenciais problemas, antes que estes escalem. Além disso, este tipo de formação deve preparar os líderes, ajudando-os a comunicar as implicações da IA de forma eficaz, promovendo a transparência e aumentando a confiança do público em geral.

Para se manterem atualizados, os líderes devem procurar apoio de especialistas externos, participar em workshops sobre novas tecnologias, e procurar oportunidades em termos de aprendizagem intersetorial. Incentivar uma cultura de aprendizagem contínua dentro das organizações de I&D&I é igualmente importante, garantindo que as lideranças e as suas equipas abordam o ecossistema de IA (em constante evolução) de forma ágil e com o devido poder de informação. Este compromisso com o desenvolvimento contínuo é vital para preparar a próxima geração de líderes em IA, e para que consigam abordar desafios complexos e dinâmicos, em termos de integração da IA nas atividades de investigação e de inovação.

Navegar desafios geopolíticos no panorama global da IA

A corrida, a nível mundial, no que toca ao desenvolvimento da IA, coloca desafios geopolíticos e éticos singulares; os líderes de I&D&I, especialmente na Europa, devem enfrentar estas barreiras em nome da competitividade, mantendo elevados padrões éticos. O rápido desenvolvimento de tecnologias de IA nos Estados Unidos e na China posicionaram estes países como atores dominantes, estabelecendo altos padrões de referência em investigação, desenvolvimento e comercialização de soluções baseadas em IA. Este cenário competitivo cria uma pressão significativa para que as organizações europeias de I&D&I acompanhem a tendência - não apenas em termos de capacidades tecnológicas, mas também na formação dos quadros éticos, sociais e políticos da IA. Assim, os líderes europeus enfrentam um duplo desafio: promover a tecnologia de IA nas suas organizações, e defender os valores europeus relativos à privacidade, à transparência e à inclusão.

Posicionar a Europa como líder em IA Responsável é tambem uma oportunidade para definir um padrão internacional para práticas responsáveis de IA, defendendo normas globais de privacidade, transparência e IA centrada no ser humano. Os líderes europeus devem procurar uma abordagem colaborativa através de parcerias internacionais e colaboração mútua, alinhando-se com as normas éticas de IA que promovem a adoção segura, inclusiva e transparente deste tipo de ferramentas a nível global.

Tanto nos E.U.A. como na China, o desenvolvimento da IA beneficia de investimentos avultados, acesso a grandes volumes de dados, e vasto apoio governamental e empresarial. Além disso, os Estados Unidos possuem um ecossistema robusto de empresas de tecnologia, bem como vastos recursos financeiros e um ambiente regulatório propício à inovação. Em alternativa, o crescimento da China no setor da IA é impulsionado pela estratégia do estado, pelo acesso a vastos conjuntos de dados, e por uma agenda ambiciosa em áreas de grande relevo. Estes fatores concedem a ambos os países uma vantagem competitiva, apresentando desafios para a Europa, onde o desenvolvimento da IA é frequentemente dificultado por restrições a nível de regulação e um mercado fragmentado.

As organizações europeias de I&D&I enfrentam obstáculos concretos para garantir o financiamento e os recursos necessários para competir à escala e ao ritmo da investigação em IA desenvolvida nos E.U.A. e na China. O acesso limitado a quantidades maciças de dados e a existência de ecossistemas de IA menos integrados podem dificultar o progresso das instituições europeias. Além disso, o compromisso da Europa com leis rigorosas de privacidade de dados - como é o caso do RGPD (essencial para proteger os direitos dos cidadãos) - também pode ser um obstáculo à inovação em aplicações de IA com utilização intensiva de dados, colocando as instituições europeias em clara desvantagem.

Defender as normas éticas europeias em contextos competitivos

Um fator diferencial no que concerne a Europa é o seu compromisso com a IA Responsável. Os líderes europeus de I&D&I priorizam a transparência, a privacidade e a equidade, com o objetivo de criar sistemas de IA que se alinhem com os valores europeus e estabeleçam uma referência global para padrões éticos. No entanto, este compromisso pode colocar desafios num mercado global competitivo onde os padrões éticos variam amplamente. A falta de um consenso global sobre práticas éticas de IA muitas vezes força as organizações europeias a fazer determinados sacrifícios, entre permanecer competitivas e cumprir elevados padrões éticos. Assim, as lideranças devem estar preparadas para lidar com estas tensões, promovendo uma IA que atenda aos valores fundamentais da Europa e, ao mesmo tempo, encontrando maneiras inovadoras de manter a relevância global.

Os líderes europeus enfrentam o duplo desafio de promover a inovação e, ao mesmo tempo, defender princípios éticos rigorosos. É essencial equilibrar a conformidade regulamentar com a flexibilidade necessária para explorar aplicações de IA. Quadros legislativos excessivamente restritivos podem “sufocar” a inovação, tornando difícil para a Europa permanecer competitiva. Os líderes devem, portanto, defender políticas equilibradas que protejam os interesses públicos e apoiem a IA Responsável, permitindo uma maior flexibilidade para a inovação.

Para abordar estas restrições, as organizações europeias de I&D&I devem encorajar a colaboração dentro e fora da Europa para aumentar a sua influência no cenário global da IA. Os líderes devem concentrar-se em parcerias transfronteiriças, reunindo recursos e conhecimentos para colmatar a fragmentação no ecossistema europeu de IA. Ao promover alianças entre instituições académicas, autoridades governamentais e o setor privado, a Europa pode reforçar as suas capacidades de IA e criar uma frente unida para competir com as potências referidas - Estados Unidos e China.

A liderança da Europa em IA Responsável também se traduz numa oportunidade única para influenciar as tendências globais. As organizações e os líderes de I&D&I podem desempenhar um papel fundamental na adoção de diretrizes éticas e de governança em IA, dando um exemplo que outras regiões podem seguir. Integrar diálogos internacionais sobre políticas e regulamentação de IA poderá permitir que a Europa promova uma visão de IA Responsável, potencialmente alterando padrões e normas a nível mundial. Esta abordagem diplomática pode ajudar a garantir que os valores europeus de transparência, privacidade e IA centrada no ser humano integrem estruturas internacionais de IA, posicionando os líderes europeus como defensores da inovação ética.

Para se manterem competitivas, as organizações europeias de I&D&I devem investir estrategicamente em áreas de IA que aproveitem os seus pontos fortes. As lideranças devem avaliar, cuidadosamente, as suas prioridades, identificando domínios onde a Europa - e os próprios países, como Portugal - pode destacar-se: IA na saúde, nas tecnologias verdes, nos recursos oceânicos, no turismo, e na produção. Ao focar-se nestes domínios, a Europa pode obter uma vantagem competitiva, alinhando os esforços de inovação com o ecossistema regulatório da região e as prioridades a nível social.

O investimento em infraestruturas e talentos de IA também é crucial para a competitividade da Europa a longo prazo. Os líderes devem defender o financiamento sustentado para apoiar a investigação avançada em IA, obter recursos computacionais melhorados e fomentar o desenvolvimento de pessoal qualificado. Os programas capazes de atrair e reter talento – oriundo da Europa e do estrangeiro - podem ajudar a colmatar a lacuna ao nível das competências, promovendo os conhecimentos necessários para impulsionar a inovação em IA. Além disso, o investimento em educação e em formação em IA preparará a próxima geração de líderes europeus para enfrentar os desafios geopolíticos de um cenário de IA em rápida evolução, fortalecendo o papel da Europa no cenário global.

Conclusão

A integração da IA em organizações de investigação, desenvolvimento e inovação apresenta aos líderes desafios complexos e oportunidades transformadoras. Para ter sucesso, as lideranças devem adotar uma visão que vá além dos benefícios organizacionais individuais, defendendo práticas éticas de IA, promovendo ecossistemas humanos e de IA colaborativos e possibilitando mudanças sociais por meio de uma cultura de abertura e experimentação. Devem, também, gerir a mudança em contextos voláteis de forma mais ágil, orientando as suas instituições através da transformação impulsionada pela IA, e mantendo os padrões éticos.

Os líderes europeus de I&D&I enfrentam uma série adicional de desafios geopolíticos, incluindo a concorrência de “gigantes” como os E.U.A. e a China, e a necessidade de equilibrar os padrões éticos com as exigências da inovação rápida. Ao promover a colaboração, defendendo quadros regulatórios equilibrados e investindo estrategicamente em domínios de IA que se alinhem com os valores da Europa, os líderes podem posicionar a Europa como um importante player no setor da IA. Navegar este ambiente geopolítico complexo requer uma combinação entre prever situações de forma estratégica, assegurar o compromisso com princípios éticos, e fomentar a adaptabilidade.

À medida que as organizações de I&D&I avançam, investir em lideranças que compreendam as dimensões técnicas e éticas da IA é fundamental. Ao promover a colaboração, defender padrões éticos e promover uma cultura de aprendizagem e adaptação contínuas, os líderes podem garantir que a IA se torna uma força com impacto positivo, promovendo avanços organizacionais e sociais. O futuro da IA nas organizações de I&D&I depende de uma liderança visionária que possa equilibrar a inovação com a responsabilidade, navegando pela incerteza para gerar um impacto significativo e sustentável.

Tal como foi referido, uma liderança eficaz deve prever situações de forma estratégica, assegurar o compromisso com princípios éticos, e fomentar a adaptabilidade. Através da colaboração intersetorial, da defesa de padrões éticos e da capacitação das equipas para trabalharem em conjunto com a IA, os líderes podem garantir que a IA contribui para o progresso sustentável das suas organizações e da sociedade.