Sistemas multienergia e gases renováveis para uma economia de baixo carbono

Bruno Henrique Santos

  (1)Candidato PhD, Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto & Consultor Sénior, REN

Filipe Joel Soares

  (2)Investigador Sénior, INESC TEC

João Peças Lopes

  (3)Professor Catedrático, Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto & Diretor Associado, INESC TEC

Este artigo discute o papel dos gases renováveis na transição energética necessária para alcançar uma economia sustentável e de baixo carbono. Apresenta também os atuais desafios, oportunidades e benefícios de uma abordagem de gestão conjunta de diferentes tipos de redes e setores energéticos que interagem a diferentes níveis num edifício, cidade ou região – o conceito de sistemas multienergia.

1. A necessidade de uma transição energética

As mudanças climáticas não são mais uma ameaça futura, pois essas mudanças estão já a acontecer um pouco por todo o Mundo. Ondas de calor e secas prolongadas na Europa, furacões e inundações na Ásia estão a atingir o planeta a um ritmo cada vez maior. Estas mudanças climáticas determinam a necessidade de descarbonizar a economia mundial e, consequentemente, de eletrificar a atividade económica, juntamente com a utilização de fontes renováveis de energia para a produção de eletricidade.

No entanto, a descarbonização completa da sociedade e da economia não será possível sem a exploração de outro vetor energético – o Hidrogénio (H2) – um gás considerado renovável se produzido a partir de eletrólise da água e utilizando exclusivamente eletricidade obtida de fontes renováveis, principalmente eólica e solar fotovoltaica (PV). A utilização de biogás deverá também aumentar. De facto, a necessidade de calor industrial de alta temperatura, a necessidade de novos combustíveis verdes para o transporte rodoviário de longo alcance, transporte marítimo e aéreo justificam a exploração do H2 como vetor complementar para apoiar um caminho mais rápido para a descarbonização. Além disso, o H2 também pode ser usado como armazenamento sazonal de energia usando o excesso de geração renovável numa solução power-to-power (P2P) e assegurando níveis adequados de segurança de abastecimento para os sistemas elétricos de energia.

A progressiva eletrificação da economia, aliada a um aumento na utilização de gases renováveis, onde o acoplamento sectorial desempenha um papel importante e a necessidade de otimização da utilização do calor conduz ao desenvolvimento de sistemas multienergia, exige uma otimização global no planeamento e operação destas infraestruturas, com um objetivo comum: Sustentabilidade.

2. Desafios e oportunidades – O papel dos gases renováveis

O aumento da integração de fontes renováveis traz o desafio de lidar com geração variável. A produção de H2 verde com recurso a eletricidade renovável pode ter um papel significativo no contexto da descarbonização do setor energético. De facto, a produção de H2 pode aumentar significativamente a flexibilidade do sistema elétrico de energia, se os eletrolisadores forem explorados como cargas flexíveis capazes de responder a variações de frequência. O H2 permite também o armazenamento sazonal de eletricidade renovável e a diminuição do conteúdo de carbono nas redes de gás natural (através da injeção direta na rede).

A variabilidade da produção renovável levará a excedentes de energia renovável em alguns períodos do ano e escassez noutros. Como o excesso de eletricidade renovável é sazonal, geralmente durante a Primavera (para vento) e no Verão (para PV), há um grande interesse em armazenar o excedente de eletricidade e os eletrolisadores surgem como uma nova carga que pode absorver essa energia. O H2 pode então fornecer uma solução de armazenamento sazonal se for possível armazenar este H2 em locais de grande capacidade, como cavernas, o que acontece já em Portugal onde as cavernas salinas são usadas para armazenar gás natural para uso no final do Outono ou Inverno. Esta solução pode levar à implementação de uma abordagem de integração de setores, onde o H2 é usado para misturar gás natural que vai abastecer turbinas a gás de ciclo combinado ou é usado diretamente por pilhas de combustível estacionárias (usadas também para produzir calor que pode ser de interesse para cogeração industrial) ou utilizado por turbinas de H2, levando a uma solução P2P. A adoção de uma solução P2P, onde é utilizado um gerador alimentado com H2, proporciona uma capacidade firme para o sistema elétrico, o que permite manter os níveis de segurança de abastecimento dentro dos limites desejados.

Os principais desafios técnicos do setor elétrico estão relacionados com o aumento da eficiência da solução P2P (eletrolisadores e geradores a H2) e com a adaptação da armazenagem das cavernas para armazenar H2. Adicionalmente, há também desafios regulatórios relacionados com a definição de um enquadramento adequado que garanta a viabilidade económica da solução P2P ao lidar com o excedente de geração renovável.

O H2 também é utilizado pela indústria em diversos domínios: refinação de petróleo, amoníaco para a produção de fertilizantes, produção de metanol e produção de aço. Nestas instalações industriais, a autoprodução de eletricidade renovável deve ser promovida através de centrais fotovoltaicas e instalações de cogeração, onde o gás natural deve ser misturado com H2 verde.

O setor da mobilidade é um dos principais setores responsáveis pelo consumo de combustíveis fósseis. Assim, é urgente substituir os combustíveis fósseis por eletricidade verde e usar biocombustíveis e H2. O H2, enquanto gás renovável, poderá ter um papel central na descarbonização do setor da mobilidade, nomeadamente para autocarros urbanos e regionais, comboios, transportes pesados de longa distância, transportes marítimos e até aéreos num futuro mais distante. O H2 verde também pode ser usado atualmente como combustível de aviação sustentável (SAF), após a devida conversão, contribuindo para descarbonizar o setor de aviação. O principal desafio técnico prende-se com o armazenamento da quantidade de H2 necessária para uma autonomia alargada, considerando todas as restrições de peso, volume, eficiência, segurança e custo. Portanto, o transporte a longas distâncias e os transportes pesados devem ser os meios preferíveis para a adoção de H2, pois, por agora, as baterias continuam a ser mais eficazes para transportes ligeiros.

Ao nível dos edifícios, os sistemas de energia têm um desafio único, que é a idiossincrasia dos consumidores, nomeadamente considerando as necessidades individuais e diferenciadas na renovação de edifícios antigos. A pobreza energética também está a gerar grandes preocupações no atual contexto geopolítico da energia e de escassez de oferta. Portanto, a resposta do lado da procura e a eficiência energética, juntamente com metodologias tecno-económicas de grande amplitude, são fundamentais para traçar novos caminhos de descarbonização e acelerar o ritmo de implementação. Além disso, em reformas onde os desafios arquitetónicos são enormes, não há soluções milagrosas, portanto, todas as abordagens tecnológicas devem ser consideradas numa abordagem conceptual ao projeto multienergia.

3. Sistemas multinergia

Uma abordagem baseada em sistemas multienergia é o passo que deve ser dado para garantir uma transição energética eficiente e sem falhas, garantindo que todos os benefícios da eletricidade, gases renováveis e cargas flexíveis (por exemplo, veículos elétricos) sejam utilizados de forma adequada.

Em termos técnicos, um sistema multienergia considera diferentes tipos de redes e setores de energia que interagem em diferentes níveis num edifício, cidade ou região, conforme se apresenta na Figura 1. Espera-se que a operação e o planeamento otimizados de sistemas multienergia tragam vários benefícios para o sistema energético global, contribuindo para o fornecimento de serviços de energia a preços mais reduzidos, aumentando a fiabilidade e a qualidade de serviço, melhorando a segurança de abastecimento e reduzindo o impacto sobre o meio ambiente.

O H2 verde pode desempenhar um papel importante na implementação de sistemas multienergia. De facto, a economia do H2 cresceu exponencialmente nos últimos anos e configura uma oportunidade única de investigação e desenvolvimento de novas soluções tecnológicas para acelerar a transição energética.

Apesar dos potenciais benefícios, existem ainda vários desafios que precisam ser superados para alcançar uma vasta implementação do conceito:

Vários esforços foram feitos nos últimos anos para superar estes desafios e conseguiram-se alguns avanços técnicos em termos de ferramentas operacionais e de planeamento, e ao nível do acoplamento dos diferentes mercados.

4. Próximos passos

No sentido de se alcançar, efetivamente, a transição energética desejada, várias medidas devem ser colocadas em prática de forma gradual, em diferentes fases:

A Figura 2 sumariza o roteiro geral até 2050 para uma economia de baixo carbono.