Até onde pode ir a energia solar fotovoltaica?

António Vallera

  (1)Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa & IDL - Instituto Dom Luiz

Miguel Centena Brito

  (2)Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa & IDL - Instituto Dom Luiz

A fração solar fotovoltaica na futura matriz elétrica não é limitada, se adotarmos um modelo inteligente para a descarbonização simultânea dos sectores elétrico e dos transportes.

Em muitos países com boa insolação, como Portugal, a energia elétrica gerada pela via solar fotovoltaica, com um custo de referência de 0,03 a 0,04€/kWh, é a mais barata das alternativas: por exemplo, ̴1/3 dos custos de uma nova central nuclear ou a biomassa. Prevê-se, por isso, que a energia solar fotovoltaica, a par da eólica, venha a ser um dos principais instrumentos para a descarbonização do sistema elétrico - e da economia.

A pergunta evidente é então: quais os limites para a penetração da energia solar fotovoltaica num sistema elétrico? Que fração da energia elétrica total pode ter origem solar?

Consideremos primeiro o impacto no território: para satisfazer, por exemplo, 50% da geração elétrica futura, não seria necessária uma fração inaceitável do território?

Tomemos uma necessidade total de 90TWh/ano em Portugal 2050, e uma geração (decorrente da tecnologia fotovoltaica atual) de 1,5GWh/ha.ano. Para satisfazer 50% da energia anual total, seria então necessária uma área de 283km2, semelhante à da albufeira de Alqueva, apenas 0,3% do território. Desde que definida com critério e envolvendo as populações, a sua implantação não será um problema (ao contrário, por exemplo, da biomassa: para a mesma geração de energia elétrica, seria necessária uma área de floresta dedicada ocupando >40% do território nacional).

Consideremos agora o impacto de uma penetração maciça de geração solar fotovoltaica no equilíbrio do sistema elétrico. O problema resulta evidentemente da variabilidade temporal da geração solar, e da sua incapacidade de se ajustar às necessidades do consumo, tal como sucede com a geração eólica. Atualmente, a geração solar+eólica é <40%, a hídrica ̴20%; com ̴3GW de interligações com Espanha e 4,6GW das centrais térmicas a gás, tem sido possível equilibrar o sistema. Mas no futuro sistema descarbonizado, a geração solar+eólica representará >80% do total, a hidroelétrica apenas ̴10%, e o gás natural é indesejado: o problema central do sistema elétrico será o seu desequilíbrio. O problema central deixará de ser o custo (económico e ambiental) da geração, passará a ser o custo de equilibrar o sistema.

O problema é ilustrado na Figura 1A, na qual representamos, ao longo de uma semana, a procura para consumo e as várias componentes da geração modeladas para Portugal 2050 (inspiradas no Roteiro para a Descarbonização Portugal 20501), refletindo diretamente os recursos (sol, vento, água e biomassa) sem qualquer tentativa de equilibrar o sistema. Na Figura 1B representa-se a procura e o desequilíbrio do sistema, representado pelo défice de geração (ou excesso, nos intervalos com valores negativos), cru e depois de acionados ao máximo os meios clássicos para equilibrar o sistema: gestão das albufeiras, incluindo armazenamento com bombagem nos períodos de excesso de geração, e gestão das centrais de biomassa (com potência máxima quando há défice, mínima quando há excesso no sistema), deixando de fora apenas a importação/exportação. O desequilíbrio é ainda brutal, com défices de 9GW (quando o sol se põe e o consumo é elevado), e excessos superiores a 20 GW (quando o sol brilha e o vento sopra forte, na primavera).

Quer isto dizer que, neste modelo descarbonizado, se ultrapassou largamente o limite de penetração da geração solar e eólica, por impossibilidade de equilíbrio do sistema?

Não, é sempre possível equilibrar o sistema, combinando (1) sistemas de armazenamento adicionais (para além das hídricas com bombagem previstas), (2) sobre capacidade de geração (com corte em horas de excesso) e (3) importação/exportação. O problema é o custo destas soluções, que facilmente poderá ultrapassar o custo da geração em si, se mal desenhado, tornando a energia elétrica excessivamente cara.

Existe, no entanto, outra possibilidade, que pode ser a chave para uma solução com os mais baixos custos: flexibilizar uma fração substancial do consumo. Ou seja, em vez de procurar ajustar a geração ao consumo, encontrar partes substanciais do consumo que possam ajustar-se à disponibilidade da geração.

Notemos, primeiro, que o consumo doméstico e pelo comércio ou indústria em geral tem alguma capacidade de ajuste à disponibilidade (um exemplo: gestão de sistemas de aquecimento/arrefecimento), mas muito limitada, muito insuficiente para o equilíbrio do sistema. Que sectores com consumo substancial serão então passíveis de flexibilização?

Um deles é a produção de hidrogénio verde por eletrólise. Os eletrolisadores poderiam funcionar à potência máxima quando houvesse disponibilidade para tal, e reduzir ou mesmo anular o consumo em caso de défice. Adicionalmente, o hidrogénio armazenado poderia ser usado em células de combustível para injetar energia no sistema, apoiando-o como uma reserva de potência firme. Porém, não é ainda claro o grau de penetração na economia das tecnologias do hidrogénio (que sofrem de altos custos e de baixas eficiências) - e, portanto, que fração do consumo total a produção de hidrogénio representará: se se limitar aos valores atuais, esta fração seria insignificante; pelo contrário, se o hidrogénio vier a ser um vetor energético com um impacto semelhante ao do gás natural, esta fração seria substancial.

Outro sector, para o qual é muito mais seguro estimar o impacto, é o dos transportes terrestes, que usam atualmente uma energia igual a 135% do consumo elétrico sob a forma de combustíveis fósseis, e que é urgente descarbonizar. Eletrificando os veículos com baterias, seria possível um ganho de eficiência da ordem de ̴2,5 relativamente aos motores de combustão interna, ou seja, o consumo de energia elétrica necessário representaria um acréscimo de ̴54%, uma fração realmente substancial. Por outro lado, a potência mecânica dos motores dos ̴7 milhões de veículos do parque português é de ̴600GW, ou seja, 100 vezes a potência média do sistema elétrico. O impacto da eletrificação da mobilidade terrestre no sistema elétrico será, portanto, colossal; a questão relevante é: será possível flexibilizar este consumo?

Se prosseguirmos a tecnologia atual, de carga das baterias por ligação do veículo a uma tomada, a resposta é sim, mas muito limitadamente. Os veículos que mais consomem são os pesados para transportes de longa distância, que evidentemente precisam de cargas rápidas e no momento, não tendo disponibilidade para esperar pelas horas de excesso de geração. Pelo contrário, os veículos ligeiros privados, que podem estar parados 99% do tempo, têm disponibilidade, mas não têm consumo, exceto em viagens longas, nas quais novamente exigem cargas rápidas, e no momento.

Imaginemos agora que os veículos trocam, em ̴2 minutos, as baterias descarregadas por baterias carregadas nas estações de serviço, onde residem acopladas à rede durante um período médio de ̴24h, durante o qual constituem uma carga totalmente flexível. A potência nominal das ̴10% das baterias residentes será de ̴60GW, muito maior que a necessária

Na Figura 1C, demonstramos o impacto destes modelos de descarbonização dos transportes terrestres, representando

Esta última função demonstra que se consegue o equilíbrio do sistema, mesmo com uma penetração de 44% de energia solar fotovoltaica (e 85% de solar+eólica), desde que optemos por um sistema inteligente de flexibilização do consumo rodoviário.

A resposta à pergunta inicial é, portanto: não existe um limite à penetração da energia solar fotovoltaica. A fração ótima será provavelmente da ordem de 40-50% em Portugal, como já apontado pelo Roteiro Nacional, e demonstrámos que não haverá problema com a sua implantação nem com a estabilidade da rede – se tomarmos as opções corretas.



Referências

1. Ministry of Environment and Energy Transition (2019), Roadmap for Decarbonisation Portugal 2050 (RNC2050).

2. A.M. Vallera, P.M. Nunes, M.C. Brito (2021), Why we need battery swapping technology, Energy Policy, 157:112481. doi.org:10.1016/j.enpol.2021.112481.