Comunidades de energia como um motor de descarbonização do sistema energétic

Ana Rita Antunes

  (1)Coordenadora Executiva, Coopérnico

Cláudio Monteiro

  (2)Professor, Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto

José Villar

  (3)Investigador Sénior, INESC TEC

As comunidades de energia podem contribuir para a descarbonização do sistema energético, mas a sua regulação e mecanismos de apoio, e os processos administrativos de licenciamento e comissionamento precisam de ser melhorados para incentivar o seu rápido desenvolvimento, contribuindo também para um papel mais ativo dos consumidores finais nos processos energéticos.

O papel das comunidades de Energia

As comunidades de energia renovável (CER) e os autoconsumos coletivos (ACC) podem desempenhar um papel importante quando o autoconsumo individual (ACI) é de difícil implementação, por falta de espaço, inadequação do perfil de consumo, dificuldade de financiamento, ou valorização do excedente. As motivações podem ser económicas, mas também de autossuficiência, ambientais e sociais.

O conceito de CER foi introduzido pela diretiva europeia n.º 2018/2001 (Conselho Europeu, 2018) que estabelece objetivos no que concerne à promoção de utilização de energia de fonte renovável. Em Portugal, a primeira legislação sobre CER foi o Decreto-Lei n.º 162/2019 Governo Português, 2019), substituído pelo Decreto-Lei n.º 15/2022 (Governo Português, 2022) sobre a organização e o funcionamento do sistema elétrico nacional, que inclui melhoras a vários aspetos da regulamentação anterior do autoconsumo.

A CSS/REC can be a condominium, with a common photovoltaic plant on the roof. It can be a village or a neighbourhood, with one or several PV plants on neighbouring land. It can be a heterogeneous organisation of neighbouring consumers where the surplus from large rooftop industries or public buildings is shared among smaller bordering consumers. It can simply be an agglomeration of ISC, who wish to manage and share their surplus production with their neighbours.Um ACC/CER pode ser um condomínio, com uma central fotovoltaica comum na cobertura. Pode ser uma aldeia ou bairro, com uma ou várias centrais fotovoltaicas em terrenos vizinhos. Pode ser uma organização heterogénea de consumidores vizinhos em que os excedentes de grandes coberturas de indústrias ou edifícios públicos é repartido entre consumidores vizinhos mais pequenos. Pode ser, simplesmente, um aglomerado de ACI, que desejam gerir e repartir com os vizinhos os seus excedentes de produção.

As CER são um processo de agregação local que dá força e poder de gestão e decisão aos consumidores, que passam a deter e a disponibilizar o recurso energético - o que, combinado com uma maior literacia energética, será um importante motor de transformação e democratização do sistema elétrico com a criação de novos modelos de negócio. No entanto, continuará a ser necessária a infraestrutura para partilhar energia localmente, pelo que a rede de serviço publico continuará a desempenhar um papel essencial, com a necessidade de equipamentos de medição inteligentes e com protocolos de repartição local da eletricidade mais complexos e inovadores.

Resumo da regulação portuguesa

Em ACC/CER, consumidores e produtores próximos geograficamente unem-se para produzir energia e partilhar os excedentes com os outros membros. Mediante as regras de partilha acordadas, determinam-se os coeficientes de alocação (CA) com os que o operador da rede de distribuição (ORD) calcula, a partir das medidas dos contadores, a) qual é a energia fornecida pelos comercializadores e qual é a autoconsumida a partir da produção local, e b) para cada recurso da comunidade que esteja a injetar energia, a quantidade a alocar entre os consumidores, definindo assim o caminho seguido pela energia. Este caminho determina as tarifas de acesso a ser pagas pela energia autoconsumida (Rogério Rocha et al., 2021), sindo habitual que não se paguem tarifas de acesso dos níveis de tensão da rede supostamente não usada. Podem também aplicar-se subsídios adicionais como a exempção parcial ou total dos CIEG no caso de Portugal.

Os CA podem ser fixos, proporcionais ao consumo, ou dinâmicos e calculados pela própria CER, sendo estes últimos, já no Decreto-Lei n.º 15/2022, os que realmente permitem implementar modelos de negócio adaptados aos requisitos de cada CER (Rogério Rocha et al., 2021).

Enquanto os ACC estão orientados a esquemas de partilha de energia simples (para prédios ou condomínios), as CER parecem orientar-se a modelos de negócio mais complexos, e precisam de constituir-se com personalidade jurídica, devendo ambos carecer de fins lucrativos. Por último, as comunidades de energia para cidadãos podem incluir fontes de geração não renovável e ser proprietárias e gerir a sua própria rede de distribuição, estando sujeitas as mesmas restrições de proximidade entre os recursos que as compõem, mas o seu objetivo principal também não pode ser a obtenção de lucros financeiros.

Modelos de negócio

A maneira como são feitos os investimentos em recursos de geração (como painéis fotovoltaicos), recursos flexíveis (como baterias), e sistemas de gestão de energia, e os perfis e setores de atividade dos membros e atores envolvidos numa CER, levam a diferentes modelos de negócio e governança (Moreno et al., 2022). Assim, membros com perfil consumidor procuraram reduzir o custo energético sem envolver-se em atividades de produção, membros com perfil promotor investiram em ativos de geração para os rentabilizar, e as empresas fornecedoras de serviços energéticos poderão desenvolver e operar os sistemas de gestão da CER. Por outro lado, os excedentes podem ser partilhados com regras simples ou em mercados locais (Mello et al., 2020), sendo que devem especificar-se as compensações financeiras aos proprietários dos excedentes, o que leva às regras de settlement como parte integrante do modelo de negócio (Mello, Villar and Saraiva, 2022).

Desafios importantes são incentivar à participação em ACC/CER, por exemplo, adicionando serviços fornecidos aos membros (USEF, 2019), e promover um papel ativo de ACC/CER na operação do sistema, mediante modelos de negócio que incentivem a participação agregada no fornecimento de serviços de flexibilidade ao sistema.

Exemplos de ACC/CER

A produção coletiva de energia renovável em Portugal está a começar mais pelo modelo de ACC e menos pelas CER, mas ainda não há informação pública sobre o funcionamento destes projetos. Em vários casos, as iniciativas encontram-se paradas num limbo burocrático, à espera da aprovação das entidades nacionais. Os exemplos seguintes são projetos que se encontram em fase de projeto e registo na DGEG.

A Freguesia de Vila Boa do Bispo está a constituir uma CER local. A forma jurídica é a de uma Cooperativa de Interesse Público, pois esta CER é da iniciativa da Junta de Freguesia. O primeiro projeto de ACC desta CER será produzir energia fotovoltaica para partilhar entre os Bombeiros, a Casa do Povo e a própria Junta de Freguesia.

Na Alta de Lisboa, um condomínio de mais de 150 apartamentos em oito prédios está a ampliar os sistemas de produção solar fotovoltaica, com vista a passar de sistemas de autoconsumo simples para as partes comuns dos prédios, para um ACC, de forma partilhar a produção local entre todos os condóminos, para além das partes comuns dos prédios.

Em Oeiras, um condomínio de seis apartamentos tomou a iniciativa de instalar uma pequena central solar fotovoltaica para começar um autoconsumo coletivo e partilhar a eletricidade entre os seus condóminos.

Limitações regulatórias e melhoras

As limitações aos projetos de ACC/CER ainda existem e são necessárias soluções.

O payback dos ACC/CER ainda não é muito favorável quando comparado com o payback dos ACI, mas as tarifas de acesso para a energia partilhada poderiam também considerar os benefícios diretos e indiretos, para o país, dos investimentos de particulares e empresas em produção renovável descentralizada.

Têm de ser disponibilizadas ferramentas de apoio burocrático e administrativo, como apoio na elaboração do regulamento que gere o funcionamento dos ACC e apoio no contacto com as entidades oficiais (Direção-Geral de Energia e Geologia, Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos, e E-Redes).

Deve acelerar-se a implementação dos sistemas de partilha dinâmicos para acomodar os modelos de negócio adequados a cada situação. Poderia também reduzir-se o papel do ORD nos processos de partilha de energia. O modelo atual assenta nas leituras virtuais, que não precisam de ser geridas pelo ORD, e que poderiam ser da responsabilidade de uma entidade terceira. Assim, seria criado espaço para novos serviços de inovação tecnológica, reduzindo as dificuldades que o ORD está a enfrentar para se adaptar a esta nova forma de partilha de energia.

Portanto, tal como existiram ajudas a outras tecnologias (tarifas feed-in para as renováveis, isenções tributárias na aquisição de veículos elétricos, etc.) seria benéfico o reconhecimento de externalidades positivas nas tecnologias de transição energética e promover apoios para acelerar a implementação de ACC/CER pelo seu contributo nesta transição e na resiliência do sistema elétrico.



Referências

European Government (2018) ‘Directive (EU) 2018/2001 of the European Parliament and of the Council, of 11 December 2018, on the promotion of the use of energy from renewable sources (text with EEA relevance)’. Available at: http://data.europa.eu/eli/dir/2018/2001/oj/por (Accessed: 14 December 2020).

Mello, J. et al. (2020) ‘Power-to-Peer: a blockchain P2P post-delivery bilateral local energy market’, in 2020 17th International Conference on the European Energy Market (EEM). 2020 17th International Conference on the European Energy Market (EEM), pp. 1–5. Available at: https://doi.org/10/gjq3gh.

Mello, J., Villar, J. and Saraiva, J.T. (2022) ‘Conciliating the settlement of local energy markets with self-consumption regulations’, Preprint article, not reviewed. Available at: https://dx.doi.org/10.2139/ssrn.4097357.

Moreno, A. et al. (2022) ‘Investments and Governance Models for Renewable Energy Communities’, in. 2022 18th International Conference on the European Energy Market (EEM).

Portuguese Government (2019) ‘Decree-Law no. 162/2019 | DRE’. Available at: https://dre.pt/dre/detalhe/decreto-lei/162-2019-125692189 (Accessed: 20 January 2022).

Portuguese Government (2022) ‘Decree-Law no. 15/2022, organisation and operation of the National Electrical System'. Available at: https://dre.pt/ (Accessed: 5 February 2022)

Rogério Rocha et al. (2021) ‘Comparative Analysis of Self-Consumption and Energy Communities Regulation in the Iberian Peninsula’, in. PowerTech 2021, p. 6.

USEF (2019) USEF White Paper: Energy and Flexibility Services for Citizens Energy Communities. Available at: https://www.usef.energy/app/uploads/2019/02/USEF-White-Paper-Energy-and-Flexibility-Services-for-Citizens-Energy-Communities-final-CM.pdf (Accessed: 31 January 2021).