(1)Investigador Sénior, INESC TEC & Professor Associado, Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto
Os mercados de eletricidade desempenharam um papel muito importante nos sistemas elétricos nos últimos 30 anos, mas a presença crescente de tecnologias de produção inframarginal tem colocado desafios adicionais às regras de funcionamento destes mercados, tornando provável que daqui a 10 anos sejam substituídos por mecanismos de contratação mais flexíveis e diversificados.
Tradicionalmente, os sistemas elétricos estavam organizados em termos de empresas verticalmente integradas, isto é, empresas que asseguravam todas as etapas da cadeia de valor do setor elétrico, desde a produção até ao relacionamento comercial com os clientes. Desde os anos 80 ou 90 do século passado, os sistemas elétricos foram sujeitos a processos de reestruturação que originaram a sua organização nas atividades de produção, de redes de transporte e de distribuição, e de comercialização. Na Europa, o relacionamento contratual entre geração e consumo é realizado através de mercados de dia anterior, operando numa base marginal, bem como através de contratos bilaterais. Por outro lado, desde cedo os governos de diversos países europeus pretenderam incentivar o investimento em tecnologias renováveis ou utilizando recursos primários endógenos, criando com esse fim regimes tarifários específicos, como por exemplo, o que enquadra a Produção em Regime Especial, (PRE) em Portugal.
Desde 2007, Portugal e Espanha integram o Mercado Ibérico de Eletricidae (MIBEL). O Mercado Ibérico recebe no dia anterior ao da operação, d-1, propostas de compra e de venda para cada hora do dia d. As propostas de venda são ordenadas por ordem crescente do seu preço e as de compra por ordem decrescente, dando origem às curvas agregadas respetivas. A interseção destas duas curvas permite obter a quantidade de energia elétrica negociada, as propostas aceites e o preço de mercado. Este preço é interpretado como o preço marginal do sistema ibérico, admitindo a ausência, nessa hora, de restrições relacionadas com as linhas de interligação que se encontrem ativas. Por outro lado, o modelo de mercado estabelece ainda que estes leilões são de preço uniforme, isto é, o preço que cada carga irá pagar ou que será pago a cada gerador despachado não corresponde ao preço incluído nas suas propostas, mas sim ao preço marginal do sistema.
Esta regra tem sido discutida com frequência, porque significa que qualquer central despachada é paga ao preço da última proposta aceite, com frequência de uma central térmica - ainda que o seu custo de produção possa ser reduzido. Nos últimos 20 anos, a capacidade instalada em PRE foi aumentando o que, aliado à prioridade conferida a esta produção, tem contribuído para alimentar esta discussão. Com efeito, em Portugal continental, a PRE incluía no final de 2021 cerca de 9 000 MW (eólica, solar fotovoltaica, mini-hídricas, cogeração, utilização de resíduos sólidos urbanos e biomassa) de um total de 19 200 MW de capacidade instalada, sendo que a produção que se prevê obter através destas tecnologias em cada hora do dia d é considerada pelo Operador de Mercado nas curvas horárias agregadas das vendas, através de segmentos a preço zero. Assim, a presença numa determinada hora de um valor elevado de PRE contribui para reduzir o preço de mercado, bem como os proveitos de centrais em Regime Ordinário.
Durante muitos anos, este regime foi aplicado sem problemas de maior, visto que os preços de mercado eram muito mais reduzidos do que os valores atuais. Com efeito, de 2007 até 2020, o preço médio de mercado oscilou entre 69,68 €/MWh em 2008 e 33,99 €/MWh em 2020, neste caso em grande medida devido à redução de consumos determinada pela pandemia de COVID 19. Todavia, desde fevereiro de 2021, os preços de mercado têm vindo a subir, de início devido ao aumento dos consumos e do preço do gás natural induzidos pela recuperação económica a nível mundial bem como devido à elevação do preço das licenças de CO2 na Europa. Desde fevereiro de 2022, o preço médio de mercado escalou para patamares com frequência superiores a 200 €/MWh devido à elevação do preço do gás natural
Tendo em conta esta evolução e as modificações que se prevê possam vir a ocorrer até 2030 na constituição dos sistemas electroprodutores ibéricos, apresentam-se em seguida diversos comentários, de modo a procurar responder à pergunta formulada no título deste texto:
Tendo em conta estes comentários, parece hoje claro que a energia elétrica que em 2030 será produzida e efetivamente paga ao preço obtido no mercado diário será cada vez mais reduzida, uma vez que uma parte cada vez mais significativa da produção estará associada a regimes contratuais diferentes. Acresce que o número anual de horas com preço nulo ou muito reduzido tenderá a aumentar, obrigando a Produção em Regime Ordinário sobrevivente a procurar outros proveitos, por exemplo nos mercados de reservas ou em futuros contratos para aprovisionamento de inércia.
Assim, tendo em conta esta evolução e os problemas e deficiências que é possível identificar nos mercados diários atuais, admite-se como muito provável a sua eliminação a médio prazo com a generalização da contratação bilateral e a eventual existência de mercados intradiários de tipo marginalista, funcionando com um gap temporal em relação à entrega física mais curto, e sobretudo utilizados para contratar pequenas quantidades de energia elétrica ou para ajustar posições compradoras ou vendedoras pré existentes.