Evolução do conceito de segurança de abastecimento

Leonel Carvalho

  (1)Investigador Sénior, INESC TEC

A grande evolução do conceito de segurança do abastecimento resulta de progressos do lado da procura, devido à profusão da produção fotovoltaica dispersa nas redes de média e baixa tensão e também da participação ativa dos consumidores nos mercados de eletricidade e serviços - principalmente, aqueles que tiverem capacidade de diferir consumos e/ou armazenar energia através de sistemas eletroquímicos e/ou térmicos.

O tema da segurança de abastecimento, neste caso de energia elétrica é, incontornavelmente, um dos grandes desafios que Portugal e a Europa enfrentam nos próximos anos. De facto, têm-se observado certas fragilidades no setor, nomeadamente no que concerne a indisponibilidade de recurso energético primário para produção de eletricidade, resultando numa inevitável escalada de preços nos mercados grossistas. A necessidade em se mitigar as evidentes alterações climáticas obriga à rápida descarbonização da economia e, por inerência, do setor elétrico, o que implica, por um lado, a progressiva desclassificação das centrais baseadas em combustíveis fósseis e, por outro lado, um aumento da procura por via da eletrificação dos consumos (e.g., mobilidade elétrica, climatização, aquecimento de águas, etc.). Perante este quadro, surge o desafio de conceber um sistema elétrico de energia (SEE) baseado em recursos endógenos, sobretudo de base renovável, que permita manter ou mesmo elevar os padrões de segurança de abastecimento a que as sociedades modernas se habituaram.

A solução para este desafio não é simples, e talvez ajude uma digressão através da evolução histórica do sistema elétrico nacional (SEN), em particular, nas suas componentes de produção e transporte. O SEN, como hoje o conhecemos, resulta da integração de várias redes independentes que abasteciam cidades e/ou regiões, e que eram baseadas em pequenas centrais hídricas ou termoelétricas (e.g., a Central Tejo, em Lisboa). Com a construção dos grandes aproveitamentos hidroelétricos nas décadas de 50, 60 e 70 do século passado, e com a criação da rede de transporte a alta e a muito alta tensão, o sistema passou a ter uma abrangência nacional permitindo não só diversificar o mix energético, mas também assegurar as redundâncias necessárias para elevar os padrões de segurança de abastecimento. Nesta fase de acelerada expansão, caracterizada pela forte eletrificação de consumos e pela relativa abundância de petróleo, gás natural e carvão, admitia-se que a segurança de abastecimento se encontrava assegurada caso a capacidade instalada do parque electroprodutor fosse superior ao valor máximo previsto para a procura ao longo do horizonte de planeamento, acrescido de uma folga ou reserva de cobertura, segundo a lógica de que, se o sistema é capaz de atender o valor máximo da procura, também o deverá ser para valores de carga inferiores. Este valor de reserva, que mais não é que uma capacidade de produção extra a disponibilizar, é fundamental para fazer face não só a decréscimos momentâneos da capacidade disponível (devido a avarias fortuitas e a ações de manutenção programadas), mas também para mitigar eventuais desvios de curto-prazo entre a produção e consumo decorrentes de erros de previsão. No fundo, esta capacidade extra quantifica a redundância a adicionar ao sistema electroprodutor para garantir a segurança do abastecimento. O valor mínimo de reserva a definir para evitar custos de investimento excessivos em capacidade ociosa calculava-se através de critérios determinísticos com base na potência instalada do maior gerador e/ou em percentuais do valor da procura máxima (e.g., folga igual a 10% do valor da procura máxima). Atualmente, o SEN encontra-se interligado com o sistema espanhol e, através deste, com o resto da Europa, permitindo trocas de energia e de reservas entre países, promovendo uma utilização mais eficiente de recursos de produção de natureza diversa disponíveis em áreas geograficamente distantes entre si.

O esforço coletivo na progressiva interligação dos sistemas electroprodutores europeus resultou no acesso a maiores redundâncias e em requisitos cada vez mais apertados para a continuidade de serviço - sendo que, atualmente, o relatório de monitorização da segurança de abastecimento (RMSA) elaborado pela Direção Geral de Energia e Geologia (DGEG) admite como critério de planeamento uma média de interrupções do abastecimento não superior a cinco horas por ano, o que configura uma disponibilidade verdadeiramente notável de cerca de 99,95%! Apesar da sua simplicidade, este novo critério concretiza uma abordagem mais acertada para a definição da reserva de cobertura, uma vez que se baseia numa visão probabilística do funcionamento do SEE. As ferramentas para a quantificação deste indicador incluem informação histórica alargada sobre a variabilidade dos recursos energéticos primários de base renovável (produção hídrica, eólica, solar, biomassa, etc.), sobre a probabilidade de avaria das unidades de produção e circuitos de interligação, sobre ações programadas de manutenção, sobre trocas previstas com Espanha e sobre o comportamento estocástico da procura ao longo do ano.

De facto, estas ferramentas são extremamente úteis num paradigma em que os trânsitos de potência tem origem nos grandes centros produtores, fluindo para os grandes centros de consumo. Contudo, antevêem-se, a médio e longo-prazo, novas fontes de incerteza que certamente impactam a definição do nível das reservas necessárias para assegurar uma adequada continuidade de serviço. Do lado da oferta, há necessidade em se modelizar a resiliência do sistema electroprodutor face à progressiva escassez de água, que afeta não só a capacidade das centrais hídricas, mas também a produção térmica convencional caso as frentes frias utilizadas para refrigeração diminuam de caudal ou passem a ter temperaturas mais elevadas. As nuvens de poeira do Saara podem também trazer problemas, uma vez que a produção fotovoltaica (PV) é afetada não só durante esses eventos, mas também ao longo dos dias subsequentes (devido à deposição de poeiras nos painéis). O papel do hidrogénio no armazenamento de excedentes de produção eólica e solar também é um tema importante para garantir potência de reserva firme nos meses em que a procura é mais elevada, recorrendo a energias renováveis.

Mas a grande evolução do conceito de segurança do abastecimento resulta de evoluções do lado da procura devido à profusão da produção PV dispersa nas redes de média e baixa tensão e também da participação ativa dos consumidores nos mercados de eletricidade e serviços, principalmente, aqueles que tiverem capacidade de diferir consumos e/ou armazenar energia através de sistemas eletroquímicos e/ou térmicos. Numa primeira abordagem, e seguindo o conceito de comunidade de energia renovável (CER), que visa promover a utilização de fontes de energia renováveis para o abastecimento dos consumos na proximidade, é comum admitir-se que todos estes efeitos podem ser contabilizados através de diagramas líquidos de consumo devidamente ajustados aos projetos que se esperam desenvolver e ligar às redes de distribuição. Contudo, este tipo de simplificação não permite contabilizar a potência e energia que os consumidores dispõem nas suas instalações ao longo do tempo, nem perceber quando e se é possível usar essa capacidade para assegurar as necessidades de segurança do abastecimento. Para perceber estas questões, atentemos ao caso dos veículos elétricos (VE) quando existe um grande número destes equipamentos ligados à rede. Caso o SEE necessite de reserva, a diminuição momentânea da potência global de carregamento pode conferir um mecanismo importante, principalmente em casos que os utilizadores dos VEs não necessitem de se deslocar nas próximas horas. Por outro lado, a antecipação dos carregamentos quando há excesso de produção renovável pode ser benéfica, principalmente se permitir evitar carregamentos em horas de ponta. Facilmente se estende este raciocínio para outros equipamentos elétricos disponíveis nas residências, no comércio ou na indústria, cujo consumo se possa ajustar no tempo e/ou que permitam fazer armazenamento de energia. Perante este cenário, é esperado que uma parcela importante do consumo se adapte temporalmente à disponibilidade de capacidade de produção no sistema, contribuindo efetivamente para a segurança do abastecimento, o que é manifestamente diferente do processo simples baseado na criação de perfis de procura líquida imutáveis. Num cenário limite, a gestão inteligente dos consumos, produção e armazenamento distribuídos permitirá criar verdadeiras ilhas de energia que provavelmente utilizarão os grandes centros electroprodutores somente em caso de falha dos recursos locais - o que não deixa de assemelhar-se à etapa inicial de desenvolvimento dos SEE. Torna-se, portanto, perentório o desenvolvimento de metodologias e ferramentas que permitam simular a flexibilidade disponível nas redes de distribuição de forma adequada, quer em termos temporais quer em termos espaciais, para com isso quantificar a contribuição dessa importante parcela para os indicadores de segurança de abastecimento e desenvolver um SEE fiável e verdadeiramente sustentável.