Operação do Sistema Elétrico – Os Desafios do objetivo de 100% Renováveis

Rui Castro

  (1)Investigador, INESC-ID & Professor Associado, Instituto Superior Técnico

Carlos Moreira

  (2)Investigador Sénior, INESC TEC & Assistant Professor, Faculty de Engenharia da Universidade do Porto

A operação de um sistema elétrico com integração de energias renováveis próxima dos 100% exige soluções inovadoras de flexibilidade, desde a escala abaixo do segundo até horas e anos. As fontes de flexibilidade podem ser encontradas em múltiplos domínios e a sua coordenação adequada é a chave para o funcionamento do sistema.

1. Introdução

As obrigações de reduzir as emissões de Gases de Efeito de Estufa (GEE), juntamente com a redução de custos observada nas Fontes de Energia Renováveis (FER), está a acelerar o compromisso, que é hoje consensual, de descarbonização da economia. Para atingir este objetivo, torna-se necessário enfrentar e ultrapassar os desafios que se colocam, tanto a nível técnico, como a nível económico, no âmbito das chamadas redes inteligentes.

Para atingir uma redução de 80-95% nas emissões de GEE em 2050, a União Europeia perspetiva que as FER contribuam com cerca de 97% na geração de eletricidade, tendo em conta o cenário de intensiva utilização das FER no processo e descarbonização(1). Atualmente, está em curso uma transformação profunda no sistema elétrico, alavancada por uma integração massiva de FER não-despacháveis e pela utilização de tecnologias de alta eficiência energética, um esforço significativo de eletrificação da economia e de eliminação do carvão como fonte energética. A descarbonização do setor da energia implica que a eletricidade assuma a liderança neste processo de mudança de paradigma. Estando os locais adequados à instalação de centrais hidroelétricas já tomados, a produção renovável irá desenvolver-se usando biomassa, energia geotérmica e, principalmente, volumes elevados de Energia Renovável Variável (ERV), FER não despacháveis devido à sua natureza flutuante, como é o caso do fotovoltaico e do eólico. Muito provavelmente, os custos associados a um sistema com integração de energias renováveis a 100% seriam maiores do que os custos relativos a sistemas com recurso a tecnologias de baixo carbono – nuclear e recolha/armazenamento de carbono, tendo em conta flutuações sazonais.

Os geradores tradicionais são tipicamente máquinas síncronas, controláveis e despacháveis, que garantem uma variedade de serviços, e.g., inércia e capacidade para regular a potência de saída, permitindo um funcionamento seguro e estável do sistema elétrico. O aumento da variabilidade resultante das mudanças paradigmáticas nos sistemas de geração e de consumo obriga à instalação de mais capacidade de produção para assegurar o equilíbrio entre geração e consumo. Assim, flexibilidade(2) é a palavra de ordem: esta flexibilidade permite gerir a mudança em múltiplas dimensões: técnicas, escalas de tempo e geográficas (serviços locais versus serviços sistémicos).

2. Como atingir o objetivo de quase 100% renováveis?

O objetivo de ter um sistema elétrico quase 100% renovável obrigará à adoção de algumas medidas facilitadoras, das quais se destacam:

A Figura 1 mostra os principais operadores da mudança na operação do sistema elétrico.

3. Os desafios do novo paradigma de operação do sistema elétrico

A progressiva implementação de um sistema elétrico quase 100% renovável vai promover mudanças visíveis no seu modo de operação. Talvez as mudanças mais relevantes estejam relacionadas com a difusão alargada de sistemas de armazenamento, implementação de programas de gestão da procura, transição para um sistema de geração baseado em inversores e o aparecimento de micro redes, como seguidamente se discute de forma breve.

A natureza variável no tempo de muitas FER torna mais desafiante a manutenção do equilíbrio entre geração e consumo; daí a necessidade de tecnologias de armazenamento que vão mudar o paradigma de operação do sistema elétrico. Assim será necessária a integração massiva de métodos de armazenamento (baterias, térmicos, mecânicos, hidrogénio e bombagem hidroelétrica) na rede elétrica.

No passado, a procura de energia elétrica era assegurada por geradores de potência ‘firme’ e fácil de controlar, onde a oferta seguia a procura de energia, e não era feito esforço para gerir esta procura (consumo). Com o aumento de penetração de ERV, a Gestão da Procura (GP) será necessária para assegurar o equilíbrio entre uma geração variável, e não muito fácil de controlar, e a procura variável. A flexibilidade proporcionada pela GP irá desempenhar um importante papel no sistema elétrico 100% renovável, com as casas inteligentes e as tecnologias digitais para gerir os aparelhos. A solução passa também pelo carregamento inteligente dos VE e pelas tarifas dinâmicas. De forma a explorar a flexibilidade do lado da distribuição (baterias e DSM), os ORT devem garantir a ausência de falhas técnicas em áreas geridas por ORD, e vice-versa.

O sistema elétrico 100% renovável terá uma quantidade apreciável de geradores distribuídos e baseados em inversores (conversores DC/AC), compondo uma rede dominada por inversores. Para ultrapassar a dificuldade de uma rede de baixa inércia, os inversores capazes de gerar uma referência de tensão e, assim, emular inércia virtual, serão predominantes. Será necessário desenhar funções de controlo avançadas para assegurar o funcionamento seguro e estável do sistema elétrico em regime estacionário, mas, principalmente, em regime transitório, para evitar deslastre de cargas, e, em situações limite, apagões totais.

A descentralização do sistema elétrico vai promover o aparecimento de micro redes alimentadas por FER, que podem ser operadas em modo isolado da rede. O comportamento transitório destas micro redes tem de ser considerado para assegurar uma operação segura das mesmas, e para que perturbem a rede à qual estão ligadas. Os transformadores inteligentes, capazes de controlar a tensão e a frequência, providenciar arranque autónomo, resistência a defeitos e reconfiguração da rede de distribuição, serão atores principais no desenvolvimento das micro redes.

4. Conclusão

O sistema elétrico 100% renovável não só é exequível e necessário, como já está em marcha. Em países como, a Islândia, Paraguai, Costa Rica, Noruega, Áustria, Brasil e Dinamarca, já existe um sistema elétrico 100% renovável ou com elevada penetração de FER. Em Portugal, dados de 2021 mostram que as renováveis abasteceram 59% da procura de eletricidade. O caminho em direção a um sistema elétrico quase 100% renovável está a ser traçado, e a operação do sistema elétrico tem de adaptar-se à mudança de paradigma. Este artigo elencou as principais mudanças que terão de ser implementadas para atingir o referido objetivo. A palavra-chave é flexibilidade. Concluiu-se que o armazenamento, a gestão eficiente da procura, os geradores baseados em inversores, e a chegada das micro redes serão talvez os principais desafios que o sistema elétrico verde tem de enfrentar. Em resumo, o sistema elétrico 100% renovável requer flexibilidade para manter a padrões elevados de estabilidade e fiabilidade.



(1)
European Commission Energy Roadmap 2050, DG Energy, doi:10.2833/10759

(2) International Renewable Energy Agency, “Power systems flexibility for the energy transition”, https://www.irena.org/publications/2018/Nov/Power-system-flexibility-for-the-energy-transition

(3) M. Valavi and A. Nysveen, "Variable-Speed Operation of Hydropower Plants: A Look at the Past, Present, and Future," in IEEE Industry Applications Magazine, vol. 24, no. 5, pp. 18-27, Sept.-Oct. 2018, doi: 10.1109/MIAS.2017.2740467