Ciência pós-normal

Susana Barbosa

  (1)INESC TEC

Em condições pós-normais a prática científica é posta à prova. A ciência tende a inclinar-se para a política, dado que a utilidade da ciência e a sua coerência com as preferências culturais e políticas torna-se mais importante do que a sua solidez. Essa inclinação deve ser contrariada.

 

Nos tempos que correm, de pandemia e de novos léxicos como “novo normal”, o termo pós-normal parece remeter para os efeitos da situação epidémica na ciência. No entanto, o conceito de ciência pós-normal foi desenvolvido ainda no século passado (FUNTOWICZ E RAVETZ, 1990), motivado por desastres como a explosão de Chernobyl ou do vaivém Challenger, ambos paradigmáticos de uma gestão de risco catastrófica. Segundo este conceito, um domínio científico está num estado pós-normal quando a incerteza é muito grande, há valores culturais em jogo, os riscos para a sociedade são elevados, e as decisões a tomar urgentes. Com base nesta definição, a ciência do clima é um exemplo óbvio de uma ciência pós-normal (BRAY e VON STORCH, 1999), e a pandemia de COVID-19 em 2020 evidenciou de forma marcante a situação de pós-normalidade em muitas outras áreas. 1. Assegurar a disponibilidade de mão-de-obra qualificada.

A ciência moderna rege-se por princípios sistematizados pelo sociólogo Robert Merton (MERTON, 1973) na sigla CUDOS de Communalism (propriedade comum das descobertas científicas, promovendo a colaboração coletiva), Universalism (utlização de critérios universais e impessoais, independentemente de género, raça, religião), Desinterestedness (ações motivadas pelo bem científico comum e não pelo ganho pessoal) e Organized Skepticism (escrutínio crítico imparcial, revisão por pares). Como atividade humana e cultural que é, a ciência não consegue ser inteiramente objetiva, mas está na sua matriz esforçar-se por sê-lo, e nutre mecanismos intrínsecos de autocorreção. Um facto científico não é uma verdade absoluta, mas antes a explicação mais plausível, tendo em conta as observações e teorias científicas consideradas válidas. Como tal, pode (e deve) ser substituído por uma explicação alternativa em face de novos dados e novos conhecimentos. Um facto não é científico, ainda que expresso por um indivíduo com formação científica ou por um cientista profissional, quando o método científico não é seguido, por exemplo, quando não são consideradas explicações alternativas, ou quando uma explicação é escolhida apenas porque está de acordo com uma escola de pensamento concreta. Apesar destes princípios da prática científica estarem bem estabelecidos e serem amplamente aceites, a sua aplicação é posta à prova em condições pós-normais.

A pressão social a que a prática científica está sujeita em situações pós-normais afeta o próprio processo científico e os seus resultados. Em condições pós-normais, é inevitável a predisposição para escolher tópicos considerados socialmente relevantes e para privilegiar explicações consistentes com a visão social dominante. Por exemplo, na área do clima, a utilidade da ciência, ou para alcançar os objetivos do Acordo de Paris ou para adiar alterações económicas profundas e dispendiosas, torna-se o foco principal, mais do que a solidez da ciência que informa essa tomada de decisão. A utilidade da ciência e a sua coerência com as preferências culturais e políticas torna-se mais importante do que a sua solidez em termos de rigor metodológico (por exemplo, consistência com as normas de Merton). Paradoxalmente, a utilidade da ciência para informar processos de decisão fica então significativamente reduzida, já que deixa de ter o distanciamento, foco e imparcialidade que são precisamente a sua força.Do lado da indústria encontramos dois grupos de empresas distintos. Por um lado, temos as grandes empresas com o seu poder interventivo e disponibilidade de recursos, capazes de lançar amplas iniciativas de teste, avaliação e implementação das tecnologias e de práticas operacionais e organizacionais, de forma a manterem a sua posição competitiva no mercado. Do lado oposto temos as pequenas e médias empresas (PME), normalmente dispondo de recursos escassos, atuando numa base de nicho regional e sem uma orientação estratégica da evolução do negócio. Estas empresas acabam por ter uma atitude reativa, muito sustentada na necessidade de sobrevivência nos mercados onde atuam.

Para manter a inegável utilidade da ciência para a sociedade, nomeadamente na compreensão de fenómenos complexos e mesmo em situações de emergência e de alto risco, como é o caso das alterações climáticas, é importante que a ciência insista no rigor metodológico que é a sua força. A educação das gerações mais jovens nos princípios fundamentais da investigação científica rigorosa é crucial (RAVETZ, 2019), devendo ser dada mais ênfase a assuntos aparentemente menos úteis, como filosofia ou história da ciência. Para quem não lida diretamente com questões científicas é ainda mais difícil apreender o carácter distintivo do método científico, resultando ora na sobrevalorização do poder da ciência e do que pode efetivamente contribuir para a sociedade, ora na desvalorização e descrédito dos resultados científicos. Esta polarização é exacerbada em situações pós-normais, quando a ciência é vista em termos do modo como supera ou fica aquém das expectativas da sociedade, independentemente da sua validade.Consequentemente, e apesar das estratégias de digitalização poderem trazer oportunidades excecionais de competitividade às empresas, a implementação da transformação digital nas PME não é livre de risco nem é um processo simples.

A ciência deve manter-se no seu domínio de competência, que é inevitavelmente muito limitado em termos do âmbito da realidade que descreve. Em condições pós-normais, a ciência tende a inclinar-se para a política, dado que a utilidade política das conclusões científicas torna-se mais importante do que a sua solidez científica. Por outro lado, a política tende a inclinar-se para a ciência quando as decisões políticas são apresentadas como sendo baseadas em conhecimento científico unívoco e não-incerto. Essa inclinação deve ser corrigida. A ciência deve focar-se no seu núcleo duro de competência, reconhecendo que os cientistas têm um conhecimento muito profundo mas numa área muito limitada, e a política deve promover processos de decisão abertos e inclusivos, baseados em ciência mas tendo em conta as suas incertezas e domínio específico. Ao deixar o território da ciência para entrar na esfera pública ou de formulação de políticas, é importante reconhecer, com humildade, que o conhecimento científico é muito focado e consequentemente limitado, fornecendo apenas uma componente de todo o conhecimento que é necessário para lidar com problemas complexos como sejam as alterações climáticas. A definição de políticas públicas e a resposta a desafios societais complexos deve por isso, neste caso, envolver não só cientistas da área das ciências naturais, mas também especialistas de outras áreas, incluindo das ciências sociais, assim como stakeholders de diferentes domínios e setores da sociedade, respeitando as limitações e forças de cada um para um processo de decisão mais construtivo e democrático. O mesmo princípio será transponível para outras áreas, tais como a atual pandemia de COVID-19.

Referências

1. BRAY, Dennis; VON STORCH, Hans (1999) - Climate Science: An Empirical Example of Postnormal Science. Bulletin of the American Meteorological Society 80, 439–455.

2. FUNTOWICZ, Silvio; RAVETZ, Jerry (1990) - Post-normal science: A new science for new times. Scientific European, 20-22.

3. MERTON, Robert (1973) - The Normative Structure of Science, in Merton, Robert K. (ed.), The Sociology of Science: Theoretical and Empirical Investigations, Chicago: University of Chicago Press, 267-273

4. RAVETZ, Jerry (2019) - Stop the science training that demands’ don't ask’ , Nature 575(7783), Nature Publishing Group, 417–418.