Edição Especial “Ciência de Dados e Inteligência Artificial e Saúde”

Inteligência Artificial no Rastreio da Retinopatia Diabética*

Teresa Araújo, Pedro Costa, Catarina Carvalho (1,2)

  (1)INESC TEC;

 

 

A utilização da Inteligência Artificial pode vir a ser essencial numa realidade onde a mão de obra especializada não consegue dar resposta às necessidades. Este artigo descreve os desafios e soluções encontrados para fazer face ao diagnóstico de retinopatia diabética considerando o aumento da prevalência de diabetes na população portuguesa.

 

 

A diabetes e a retinopatia diabética

A diabetes é uma doença metabólica caracterizada por elevados níveis de glicose no sangue durante longos períodos de tempo. É uma das doenças com maior crescimento a nível mundial e afeta atualmente 415 milhões de pessoas em todo o mundo, estimando-se que em 2040 esse número passe a ser de 642 milhões de pessoas. Portugal regista uma das mais elevadas taxas de prevalência da diabetes na Europa, sendo que 13,3% dos portugueses na faixa etária entre 20 e os 79 anos têm diabetes, o que corresponde a mais de 1 milhão de pessoas.

A retinopatia diabética (RD) é uma complicação da diabetes, que afeta mais de 25% da população diabética, e que é caracterizada por danos nos vasos sanguíneos da retina (camada do olho onde são formadas as imagens que vemos). Trata-se de uma patologia silenciosa que diminui gradualmente a acuidade visual dos pacientes, sendo a principal causa de cegueira na população em idade ativa. Contudo, pode ser tratada com sucesso se for diagnosticada numa fase inicial. Os atuais rastreios de RD feitos por todo o país são essenciais para identificar atempadamente casos desta doença e evitar a sua progressão.

O rastreio da retinopatia diabética

Durante o rastreio da RD, são capturadas fotografias do fundo dos olhos do paciente. O procedimento é não invasivo, uma vez que os olhos são como janelas para o corpo, que nos permitem observar de forma direta os vasos sanguíneos e detetar doenças como a RD. O diagnóstico da RD é realizado através da deteção de várias lesões na retina, como microaneurismas, hemorragias, exudados e neovasos (Figura 1). De acordo com a presença e quantidade dos diferentes tipos de lesões, pode ser associado ao paciente um grau de severidade de RD.

Anualmente uma parte apreciável da população diabética é examinada em unidades de cuidados de saúde primários. No norte de Portugal, a Administração Regional de Saúde do Norte (ARSN) é a entidade responsável por gerir e implementar o processo de rastreio da RD. As imagens adquiridas (retinografias) são armazenadas no arquivo da ARSN, sendo a primeira decisão médica tomada no Centro de Leitura, onde oftalmologistas analisam as retinografias e concluem acerca da sua normalidade. Se a retinografia for normal, recomenda-se um novo rastreio ao doente após um ano. Se for anormal, o oftalmologista determina a severidade da patologia e o doente é encaminhado para tratamento.

A prática de rastreio atual implica que os oftalmologistas do Centro de Leitura analisem todas as imagens, incluindo as com má qualidade, impossíveis de diagnosticar, e imagens sem sinais de patologia, que representam cerca de 80% do número total de imagens adquiridas.

A plataforma SCREEN-DR: Inteligência Artificial para diagnóstico da RD

O aumento da prevalência de diabetes coloca alguns desafios aos processos de rastreio da RD visto que têm de estar preparados para acomodar uma população em constante crescimento. Para ajudar os oftalmologistas neste processo, automatizando parte dele e reduzindo a carga de trabalho dos especialistas e a subjetividade do diagnóstico de RD, o INESC TEC desenvolveu a plataforma SCREEN-DR (Figura 2).

O SCREEN-DR oferece duas soluções avançadas de Inteligência Artificial (IA): uma para a avaliação da qualidade da imagem (EyeQualDR) e outra para a deteção da normalidade (EyeDetectDR). Além disso, é ainda fornecida uma ferramenta que permite classificar as imagens patológicas de acordo com a severidade da RD (EyeCadDR). Esta ferramenta auxilia o oftalmologista na tomada de decisão, funcionando como uma segunda opinião.

Nos casos em que as imagens adquiridas apresentam má qualidade, o EyeQualDR aconselha o técnico a realizar uma nova captação de imagens. Já as imagens com boa qualidade são armazenadas na ARSN e processadas pelo EyeDetectDR, que distingue as imagens normais das patológicas. As imagens patológicas são classificadas a posteriori por um oftalmologista, com o auxílio do EyeCadDR. Ao retirar do conjunto de imagens a observar aquelas que correspondem a situações não patológicas, a plataforma SCREEN-DR torna o processo de rastreio e diagnóstico da RD mais eficiente.

Os avanços na área de IA, nomeadamente em técnicas de Deep Learning (Aprendizagem Profunda), permitiram obter resultados bastante promissores no diagnóstico automático de imagens médicas. Estas técnicas “aprendem”, tal como os humanos, através de experiência e tentativa e erro. Para isso, o algoritmo observa uma grande quantidade de exames oftalmológicos com o respetivo diagnóstico médico. O algoritmo tenta imitar a decisão do especialista, aprendendo a identificar quais os padrões nas imagens que são sinais da patologia.

Seguindo estas abordagens foi possível obter um sistema capaz de identificar simultaneamente quais as imagens que têm qualidade suficiente para serem diagnosticadas e, dessas, quais devem ser encaminhadas para o médico por mostrarem indícios de RD. Este sistema aprendeu com uma grande quantidade de dados de rastreios passados efetuados pela ARSN, contemplando imagens de uma grande diversidade de pacientes e adquiridas por diferentes máquinas, permitindo ao algoritmo obter uma experiência bastante completa. Intuitivamente, quanto mais experiência tem um médico, potencialmente mais acertadas serão as suas decisões, e a mesma lógica pode ser aplicada a este tipo de técnicas de IA.

A solução proposta para o estadiamento da doença permite obter um grau de RD, uma explicação associada ao grau e uma incerteza associada ao diagnóstico. Este sistema foi treinado apenas com imagens de fundo de olho e grau de RD associado, atribuído pelos oftalmologistas. A associação de uma incerteza à predição do sistema é de especial relevância no diagnóstico assistido por computador, uma vez que permite estabelecer quais os casos que necessitam de análise adicional por parte dos especialistas. A explicação da decisão do sistema através do realce das regiões da imagem que contribuíram mais para essa decisão permite mitigar o comportamento “caixa-negra” (designação comummente atribuída a um sistema que apenas permite aceder à entrada e saída, sem acesso ao seu interior) associada às redes neuronais profundas, que comumente dificulta a adoção de sistemas automáticos em contextos clínicos.

Para avaliar esta solução, comparou-se as predições dos sistemas de IA com os diagnósticos de vários médicos em exames passados. Verificou-se que o sistema é capaz de identificar pacientes que necessitam de tratamento com um nível de fiabilidade semelhante ao dos médicos, entrando em desacordo com os especialistas na mesma proporção que os próprios especialistas entre eles. Adicionalmente, como o sistema utiliza dados gerados no rastreio de RD, pode continuar a melhorar à medida que mais exames são feitos.

Estes resultados sugerem que a implementação deste sistema no processo de rastreio da RD poderia reduzir o número de exames que os especialistas têm que analisar, podendo despender mais tempo no tratamento dos pacientes mais graves. Considerando que só cerca de 10% dos pacientes que são rastreados requerem tratamento, este sistema poderá reduzir em, potencialmente, 90% o número de casos que os médicos especialistas têm que analisar. Sistemas como este são de especial importância para garantir que os rastreios de RD continuam a ser viáveis no futuro, já que a população diabética está em constante crescimento. O objetivo final é salvar a visão a um maior número de pessoas possível e garantir que podem manter os seus empregos o que se traduz em benefícios económicos para o país, mas, mais importante ainda, permite que mantenham a sua qualidade de vida.

Os médicos oftalmologistas que colaboraram no desenvolvimento do projeto consideram que: “a implementação do SCREEN-DR, que pretende otimizar e simplificar o processo de diagnóstico e identificação de doentes de risco de RD, recorrendo a soluções de rastreio por técnicas de IA, poderá ter um impacto muito positivo na qualidade de vida de muitos doentes diabéticos. Programas como este facilitam em muito a tarefa dos médicos em identificar mais precocemente um maior número de doentes em risco, acelerando assim o seu acesso ao tratamento.”