Edição Especial “Ciência de Dados e Inteligência Artificial e Saúde”

A Ciência dos Dados e a Aprendizagem Computacional ao Serviço da Decisão Clínica Oncológica*

Catarina Santos, Mário Amorim Lopes (1,2)

  (1)INESC TEC; (2)Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto;

 

 

As instituições de saúde, e os hospitais em particular, lidam diariamente com um objecto de valor incalculável: dados. Se esses dados puderem ser extraídos dos registos clínicos e originar modelos de de machine learning de apoio à decisão clínica, abrem-se novas possibilidades para a prática clínica, para a investigação, mas sobretudo para os pacientes

 

 

Apesar da evolução constante em oncologia, demonstrada através da disponibilidade de novas opções terapêuticas, o cancro continua a ser uma das doenças com maior prevalência (afectava, em 2017, cerca de 233 milhões de pessoas em todo o mundo) e uma das principais causas de morte nos países desenvolvidos, o que gera um enorme fardo social e económico. De facto, com um custo anual de mais de 199 biliões de Euros só na Europa – e com uma porção significativa dessa quantia a ser gasta exclusivamente em medicação –, encontrar uma cura para o cancro tem-se mostrado um processo extremamente complexo, moroso e dispendioso.

Como parte dos procedimentos para diagnóstico e tratamento de pacientes é necessária a recolha diária, por parte dos profissionais de saúde, de enormes quantidades de dados. Esta informação é armazenada no processo clínico do paciente, e engloba os indicadores do seu estado geral de saúde, histórico, exames e diagnósticos, notas de acompanhamento médico, entre muitos outros. Esta informação, que aporta um enorme valor clínico, mas também científico, é geralmente guardada em texto livre, o que torna difícil a sua utilização para os mais diversos fins, incluindo tratamento estatístico ou tomada de decisão clínica. Mais grave ainda, dificulta a tarefa do médico, pois tem de analisar enormes volumes de texto, e leva a erros como duplicação de exames.

O projeto de investigação Mine4Health tem o objetivo de ajudar a resolver ou, pelo menos, minimizar os problemas descritos acima, através de dois principais contributos. Primeiro, através de uma abordagem de processamento de linguagem natural, visa converter o texto livre presente nos registos clínicos em blocos estruturados e organizados cronologicamente, guardados numa base de dados, para que se transformem na narrativa clínica de cada doente e possam, posteriormente, ser aproveitados para fins clínicos, de investigação e de gestão. Já o segundo contributo é mais ambicioso. O objectivo é utilizar os resultados sistematizados da etapa anterior, desenvolver e aprimorar modelos de Aprendizagem Computacional e de Inteligência Artificial para que possam ser usados para o apoio à decisão clínica, em particular para prever a resposta a tratamentos (modelos preditivos) ou sugerir procedimentos e acções (modelos prescritivos), tendo em conta as características individuais de cada paciente, incluindo a sua faixa etária, género, etnia, comorbilidades, condições prévias e perfil biológico. Neste âmbito, o desenvolvimento de novos modelos pode tornar-se num importante aliado no combate contra o cancro — desde que os dados existam e possam ser usados.

Apesar de já existirem trabalhos científicos dedicados a este tema, estes são limitados a nível nacional, e tendem a recorrer a pequenos conjuntos de dados, o que restringe a utilidade dos resultados obtidos. Assim, a principal vantagem deste projeto é, em parceria com o IPO Porto – o maior hospital oncológico de Portugal, e um dos maiores da Europa –, ter permitido a obtenção (de forma anonimizada e confidencial) de mais de 10 anos de registos médicos, que se traduzem em informação sobre 795 808 pacientes distintos e 7 791 918 episódios clínicos, e mais de 2000 registos criados e actualizados diariamente.

Como contributo para a sociedade, esperamos que os métodos desenvolvidos no contexto deste projecto possam ajudar os profissionais de saúde no processo de decisão clínica, explorando assim o potencial da experiência clínica do IPO Porto, e auxiliando a tomada de decisão com recomendações e diretrizes específicas para cada paciente. Entre muitas outras possíveis aplicações, esta ferramenta pode auxiliar na estratificação dos doentes quanto ao risco de sofrer recidivas, desenvolver metástases ou ser submetido a um certo tratamento ou intervenção, e reduzir a necessidade de realizar procedimentos exploratórios invasivos. Ao ser baseada em toda a informação relevante e apresentar sugestões o mais actuais possível – isto é, de acordo com as técnicas oncológicas mais recentes e cientificamente validadas –, esta ferramenta tem o potencial de evitar gastos desnecessários através da redução significativa da quantidade de diagnósticos errados e da prescrição de medicação incorreta, de reduzir a carga de trabalho sofrida pelos clínicos e, até, de detectar marcadores subtis que poderiam não ser considerados tipicamente pelos médicos. Os produtos deste trabalho podem, também, ser transferidos para outros centros oncológicos, assim como para hospitais generalistas com valências de oncologia, nacionais e internacionais, o que estimulará práticas de partilha entre centros e facilitará a investigação oncológica no futuro.

Finalmente, e não obstante todos os ganhos de eficiência, esta ferramenta pode traduzir-se em diagnósticos mais rápidos e mais precisos, tratamentos personalizados de acordo com os traços biológicos do paciente e do seu cancro específico, uma melhor compreensão do seu diagnóstico e opções terapêuticas, e uma maior qualidade de cuidados de saúde para toda a população.